15 de out. de 2010

Gil Vicente e a censura inquisitorial

É estranho que Gil Vicente tenha deixado definitivamente de compor peças justamente no mesmo ano em que se deu a instauração da Inquisição em Portugal. Decerto que não se trata de mera e casual coincidência, mas sim de uma retirada estratégica do autor em razão de pressões de Roma para que fosse silenciado o irreverente e audacioso autor de sátiras contundentes que ousavam pôr em cheque os desconcertos da Santa Sé e das personalidades mais representativas do alto clero. Como foi antes comentado, desde as diatribes vicentinas no auto Jubileu de Amores, levado à cena em Bruxelas, na presença do cardeal Aleandro, a situação de Gil Vicente perante a cúria romana tornou-se extremamente delicada, principalmente pela indignação que levou esse influente representante do Papa a denunciar a grave transgressão do autor e solicitar providências contra o abuso. À luz da História e das ambições de D. João III é possível levantar hipóteses que pelo menos em parte dilucidem o misterioso afastamento de Gil Vicente, numa fase de sua carreira em que gozava de imenso sucesso as suas peças. O auto Jubileu de Amores foi composto para ser apresentado por ocasião das celebrações do nascimento de um filho de D. João III e afilhado do imperador Carlos V. A primeira apresentação deu-se em Bruxelas, em 1531. Estava presente à representação do referido auto o cardeal Girolano Aleandro, diplomata que o Papa incumbira de persuadir Carlos V a não adiar mais uma vez o esmagamento da heresia alemã. Era um teólogo sábio e combativo. Tinha sido ele quem, dez anos antes, discutira com Lutero em Worms e conseguira que a Dieta Imperial o declarasse herege. Foi ele quem descreveu a peça em uma carta enviada ao secretário do Papa, tecendo rigorosas críticas à comédia vicentina, como pode ser constatado no trecho que se segue:
“[...] uma comédia em castelhano e português, de má espécie, que debaixo do nome de um Jubileu de Amor era manifesta sátira contra Roma, designando abertamente todas as coisas: que de Roma e do Papa não vinham senão traficâncias de indulgências, e quem não dava dinheiro não era absolvido, mas excomungado sempre de novo. E assim começou e continuou e acabou a comédia. Havia principalmente um que falava envergando um roquete de bispo, e tinha um barrete de cardeal na cabeça, obtido em casa do reverendíssimo legado, por ele dado sem que os nossos soubessem para que fim. E todos riam tanto que parecia que todo o mundo rejubilava. A mim, no entanto, partia-se-me o coração, parecendo-me estar no meio da saxônia a ouvir Lutero, ou nos horrores do saque de Roma”. 
Conforme afirma José Hermano Saraiva, a peça perdeu-se ou foi destruída por ordem da censura inquisitorial, mas sabe-se do que tratava: de uma sátira ao comércio das indulgências, assunto que na época escandalizava a cristandade e constituía um consistente argumento utilizado pelos protestantes alemães contra a política religiosa do Papa. Como revela o trecho da carta acima transcrito, a personagem principal da peça era um cardeal que vendia a salvação eterna a quem tivesse dinheiro e mandava para o inferno quem o não tivesse ou que não o quisesse dar. Como no guarda-roupa da embaixada não existia barrete cardinalício, pediram-no emprestado ao legado do Papa junto do Imperador. 
A situação não podia ser mais burlesca e irreverente: era coberto com o autêntico chapéu do próprio representante do Papa que o ator vicentino destilava sarcasmos contra os escândalos de Roma.[...] A sala vinha abaixo com gargalhadas mas, enquanto todos riam, o bispo Aleandro sentia-se constrangido. Na carta, Aleandro sugeriu ao Papa “que fizesse a tal respeito qualquer admoestação”. Não menciona, porém, a quem deveria ser endereçada a reprimenda, mas deixava bem clara a sua perplexidade por tais blasfêmias ocorrerem de um país que ele considerava defensor da fé.A denúncia de Aleandro chegou às mãos do Papa, em 1532. Durante esse ano, Gil Vicente não sofreu nenhum tipo de repreensão ou de penalização, tanto que no ano seguinte ainda chegou a encenar a Romagem dos Agravados, peça audaciosa que deve ter desgostado ainda mais os seus censores, pois, logo a seguir, o autor deixou de freqüentar a Corte e de encenar suas peças, só reaparecendo depois de dois anos para apresentar a última peça que compôs: a Floresta dos Enganos. Segundo José António Saraiva, esses anos de ausência corresponderiam ao período de expiação, que deve ter decorrido durante os anos de 1534 e 1535, e teria consistido na reclusão de Gil Vicente em algum convento.
Data de 1532 a última peça que escreveu criticando o clero - Romagem dos agravados –, uma sátira aos inadaptados, descontentes e à dissolução dos costumes da classe religiosa. A forma súbita com que deixou de verberar contra o clero talvez tenha relações muito estreitas com as medidas coercitivas que já começavam a ser levadas à prática contra qualquer ameaça ao já tão abalado poder da Igreja Católica, cuja verdade sustentada há mais de um milênio, inclusive a do próprio Papa, passa a ser questionada por Lutero.
Como já foi referido antes, entre 1533 e 1536, Gil Vicente escreveu apenas três peças: Amadis de Gaula, tragicomédia inspirada no livro de cavalarias do mesmo nome; o Auto da Cananéia (1534), obra de devoção sobre o Evangelho da Cananéia, e, por fim, a comédia Floresta dos Enganos (1536). Essa última peça, perpassada de ironia desde o título, sugere a ocorrência de uma repreensão ao autor, quiçá pelo próprio rei D. João III ou através dele, por obediência às determinações da censura eclesiástica em relação à excessiva liberdade de expressão antes desfrutada largamente pelo dramaturgo. Assim, desde a primeira cena até a décima segunda estrofe, as falas do Filósofo (alter ego do autor) com o Parvo funcionam como uma espécie de prólogo, que deve ser lido atentando para a importância que o mesmo reveste para o entendimento das razões que explicam ausência de três anos de Gil Vicente, bem como para a constatação de que, apesar de ameaçado e perseguido, ele não abdicou dos seus pontos de vista. Para José Hermano Saraiva, “é essa a finalidade do Prólogo”, daí afirmar que a sua grande importância deve-se, principalmente às seguintes razões: O Prólogo nos mostra o juízo que o próprio Gil Vicente, já perto do fim da vida, formulava sobre o sentido crítico da sua obra e por conter o único retrato sério que ele traçou da sua própria figura literária: o filósofo incompreendido por uma sociedade de néscios, amordaçado por uma repressão intolerante, mas apesar de tudo, corajoso até o fim. As palavras que finalizam a peça deixam bem claro que o autor está, com ela, despedindo-se do seu público e da sua atividade teatral: A Ventura tomou as mãos ao Príncipe e Princesa, e com sua música se acabou esta comédia, que é a derradeira deste segundo livro, e a derradeira que fez Gil Vicente em seus dias.
A representação do auto tem início com a entrada em cena de um filósofo que participa da peça não como uma personagem tipo, mas como o autor que irrompe perante a platéia para falar de si mesmo e para dar explicações acerca da peça. Com ele vem um Parvo, atado ao seu tornozelo com uma peia, situação essa que não deixa dúvidas acerca da metáfora que veicula: a da perda da liberdade, da prisão. Depois de explicar para o público a esdrúxula condição em que se encontra, dá início ao relato da sua penosa experiência:

Os mui antigos romanos
Começando a ser tiranos,
P´lo que Roma se ofendia,
Eu, por mi filosofia,
Lhes dei conselhos mui sanos.
E, porque a repreensão
Nunca agradou a ninguém
Eu vi-me em grande aflição
E meteram-me na prisão
Num cárcere tenebroso.
E não foi tudo. Mas depois
Disto, que ouvido haveis,
E só por isto que digo,
Ataram assim comigo
Este bobo que aqui vedes.
Que o traga desta sorte
Ao comer e ao cear
Ao dormir e ao conversar
E isto, sob pena de morte
Que o não possa deixar
Até morrer.

Sentindo-se fatigado, o Parvo prepara-se para dormir, antes pedindo ao Filósofo que não se aproveitasse da oportunidade para fugir. O filósofo diz para platéia que não pretende evadir-se, da forçada penitência, não obstante considerá-la injusta. Porém previne àqueles que se arriscam a expor livremente as suas idéias transgressivas, para os perigos que os ameaçam, aconselhando-os a prudência contra a opressão e a tirania:

Vês que faço penitência
Desta sorte, sem pecar;
E é tanta a minha paciência
Que apesar da penitência
Não me quero ausentar.
Porque a obediência, amigo,
As virtudes são suas pontes.
No teu falar não te isentes,
Porque te vais do abrigo
Ao perigo que tu não sentes.

É evidente que da leitura dos versos acima não se deve inferir que Gil Vicente esteve preso ou vigiado. Todavia não se pode descartar uma interpretação da fala do filósofo que remeta para a idéia de que, por causa das críticas destravadas e endereçadas aos cardeais (os mui antigos romanos) foi alvo de perseguição, cumpriu pena tendo ainda que se submeter a uma permanente censura. Tal penalização é considerada imerecida (dano profano), mas mesmo assim, continua fiel à Igreja e obediente às suas normas:

E ainda que o dano seja profano.
Toma isto para teu guia:
Eu tenho ao Colégio Romano,
Que comigo foi desumano
Obediência, todavia.

A alusão à prisão e ao exílio de dois anos fora da Corte feita pelo Filósofo no Prólogo do auto é confirmada pela personagem do mesmo auto, Grata Célia, que assim fala:

E, que fez triste a mim
Que tanto mal me fizeram?
Que pecado me prendeu?
Que culpa me desterrou?
Por que tal pena me deram? 

A intriga mitológica, a tematização do engano, o tom melancólico da comédia e o antes referido prólogo enunciado pelo Filósofo soam como uma despedida amargurada do autor que, talvez já pressentindo o risco que corria de sofrer penalizações por parte do Tribunal do Santo Ofício, parece ter resolvido encerrar as suas severas críticas contra o Clero, por medida de prudência, quando começaram a despontar em Portugal os sinais soturnos das densas trevas da Inquisição, quando a atmosfera na Corte de D. João III já não era propícia à liberdade de expressão.
Foi precisamente em 1531, data do afastamento de Gil Vicente da Corte, que o rei solicitou a Roma o estabelecimento da Inquisição em Portugal, sob alegação de que a heresia luterana começava a irromper no país. Em 1536, Roma atende ao pedido de D. João III, assinalando o advento de uma nova era, marcada pelos horrores praticados pelo Tribunal do Santo Ofício contra quem ousasse contrariar as suas determinações, sob o olhar complacente e cúmplice do poder real. 
A renúncia de Gil Vicente imposta pelas circunstâncias adversas ou motivada por uma atitude voluntária de protesto, contra o cerceamento da liberdade de expressão, constituiu um acerto, uma vez que assegurou a tranqüilidade dos derradeiros dias de vida do autor. Supõe-se que Gil Vicente tenha falecido em 1536, pouco tempo depois da última encenação do auto Floresta de Enganos. Deixa a vida, portanto, quando a Inquisição chega a Portugal trazendo o rigor da censura que jamais permitiria a continuidade do seu teatro crítico. 
Depois da morte de Gil Vicente muitas peças foram censuradas, sofreram cortes por parte dos censores do Santo Ofício ou, por serem consideradas heréticas, foram incluídas no Índice das obras proibidas. Deste modo, alguns textos do autor perderam-se. As quarenta e seis peças que foram conservadas muito devem ao zelo do filho do autor, Luís Vicente, que as organizou e as publicou postumamente, no ano de 1562.

Notas
1..José António Saraiva, História da Cultura em Portugal, vol. II, p. 144-145.
2.José Hermano Saraiva, Op. cit. p. 318.
3.António José Saraiva, Testemunho Social e Condenação de Gil Vicente, p. 328-329.
4.Na opinião de José H. Saraiva, o Auto da Cananéia foi escrito durante o período de expiação da pena de Gil Vicente. Cf. Testemunho Social e Condenação de Gil Vicente, p. 328-329.
5.Logo à primeira leitura da “comédia”, fica patente que o Filósofo e o Parvo não são personagem da Floresta de enganos. Eles só figuram nas doze primeiras estrofes da peça, anteriores à abertura e encenação propriamente dita. Cf. Gil Vicente, Op. cit., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1975.
6.José Hermano Saraiva, Op. cit., p. 320.
7.Era costume na época amarrar os prisioneiros aos seus guardas, para que não fugissem.
8.Gil Vicente, “Floresta de enganos”, In Obras Completas, vol. III, Sá da Costa, p. 204-205. Os versos são escritos em castelhano : Y que hice triste yo, / que tanto mal me hicieron? / qué pecado me prendió? / Qué culpa me desterro? / Por qué tal pena me deron?
9..Em 1551 os censores do Santo Ofício incluíram no Índice dos livros proibidos a Farsa dos Físicos e Jubileu de amor. O Auto da Feira e o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Barca da Glória, dentre outras, sofreram cortes severos em todas as cenas que denunciavam o clero.


Autora: Zenóbia Collares Moreira . O teatro crítico de Gil Vicente. Natal, 2001.

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