18 de nov. de 2010

A Saudade e a Mística do Amor Idealizado.


Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
Camões

Relacionadas tanto à temática amorosa de pendor sensual quanto à de índole neoplatônica, irrompem com muita freqüência na poesia dos líricos maneiristas composições que expressam a saudade da mulher amada, do amor perdido ou a saudade da felicidade passada. A forma mais comum de vivenciar o amor “consiste na saudade, seja ela encarada, segundo o neoplatonismo, como a ausência que se torna condição de aperfeiçoamento, seja como a ausência que é sentida como carência insuportável”. 72
A saudade exprime também outro momento da angústia na poesia dos maneiristas: aquele em que a memória se obstina na recordação dolorosa de um bem que se teve e que se perdeu na distância ou no tempo pretérito, como se queixa Diogo Bernardes:

Se quando vos perdi, minha esperança,
A memória perdera juntamente
Do meu passado bem, do mal presente
Pouco sentira a dor de tal lembrança.73

Toda a satisfação passada se reduz à mágoa e ao desprazer, porque provém exclusivamente de lembranças cuja realidade, que tem a mesma consistência do sonho, já se esvaíra.
Camões escreveu vários sonetos tematizando a saudade da felicidade perdida, ou a dor proveniente da ausência da mulher amada, sem a qual só lhe resta chorar no tempo presente as memórias de um outro já pretérito:

Doce contentamento já passado
Em que todo o meu bem já consistia,
Quem vos levou da minha companhia
E me deixou de vós tão apartado? 74

A experiência da saudade leva o enamorado à tentativa de recuperar o amor e a mulher amada através da memória, da reminiscência do bem distante, mais das vezes situado num tempo já bem recuado. Todavia, a rememoração do que perdeu não o liberta do sentimento de frustração e tristeza provocado pela recordação do passado, antes intensifica a dor da ausência e o sentimento de perda:

Doce despojo de meu bem passado,
Testemunha da dor que me ficou,
De aquela cujo foste, e cujo sou,
Por quem chorei, e agora sou chorado. 75
Doces lembranças da passada glória,
Que me tirou Fortuna roubadora
[...]
Impressa tenho na alma a larga história
Desse passado bem, que nunca fora;
Ou fora, e não passara; mas já agora
Em mim não pode haver mais que a memória. 76

Em muitos casos, o bem perdido pela distância no espaço ou no tempo, não significa que o amor tenha sido correspondido. Os poetas colocam-se invariavelmente na condição de vítimas do amor, dos seus enganos e ilusões, ou de esperanças fundadas em devaneios ou desejos impossíveis, como se queixa Francisco de Andrade:

Contentamentos meus, que já passastes,
Trocando a vida alegre, que vivia,
Por este mal, que passo, que um só dia
Me não deixam, depois que me deixastes

Acabar me convém, pois acabastes
De dar-me o desengano, qu’encobria
Uma esperança vã, que me trazia
Contente, a qual também me já tirastes.

Os olhos, que amor sempre guiava
Aonde eu tinha firme o pensamento,
Quando vossa presença os alegrava,

Agora choram vosso apartamento,
Que lhe tirou um bem, que os sustentava,
E só de vós ficou o sentimento. 77

Nas poesias dos maneiristas, a mulher amada está sempre distanciada do homem dela enamorado, mesmo quando o amor é correspondido. O discurso deste é sempre um solilóquio doloroso, muitas vezes expressando o padecimento presente em razão das reminiscências do bem perdido ou distante, que o amante preferiria apagar da lembrança, pois estas não devolvem as alegrias passadas: antes me põe diante o bem perdido, como se queixa Diogo Bernardes, ou fazem tanto mal ao pensamento, conforme escreve Camões. O drama da ausência é, assim, protagonizado pela própria revivescência do passado irrecuperável, que melhor seria esquecer, mas que permanece vitoriosamente presente e indelével na memória afetiva do amante:

Se quando vos perdi, minha esperança,
A memória perdera juntamente
Do meu passado bem, do mal presente,
Pouco sentira a dor de tal mudança.

Mas meu fado cruel, que não descansa
De sempre me cansar continuamente,
Me faz lembrar que já me vi contente,
Por me fazer mais triste na lembrança.78

Em Babel e Sião, o saudosismo camoniano é comunicado e definido a partir de expressões plenas de sentimento que a linguagem própria do neoplatonismo ajuda a formular, reforçando a busca e a ânsia de perfeição concretizada na perseguição “da verdade única e essencial” que irrompe nos versos do poema. Neles, observa-se a superação da saudade da pátria e da mulher amada por uma saudade de índole mística que o remete, através de uma suave e tranqüila rememoração, a um recuadíssimo tempo pretérito, anterior à sua humanidade, vivido no espaço transcendente e na plenitude do espírito:

Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do Céu,
Daquela Santa Cidade
Donde esta alma descendeu. 79

As expressões místicas dessa saudade do céu e de uma ventura eterna aparecem também em várias poesias de Frei Agostinho da Cruz, quase sempre derivada de um desejo de libertação resultante do desengano com os homens e do cansaço da vida. A saudade do frade-poeta tem, no entanto, um destinatário definido: Deus.
Nos versos, que se seguem, de uma das suas elegias, alma desterrada na terra expressa o seu anseio de amor divino:

Assi a minha alma saudosa,
Dessa vossa divina formosura,
Toda ardendo em sede amorosa;
Busca a vós, ó fonte de doçura. 80

O poeta procura definir, em seus versos, as saudades dimanadas do amor divino, saudades que agasalhem e aqueçam a frieza alojada em sua alma. São saudades que, em alguns momentos, lhe inundam a alma com uma suave e serena alegria, em outros, motivam lamentos acerca da dor do desterro, da angústia da solidão: Não há pastor tão néscio que não creia / Que nascemos aqui neste degredo, / Desterrados da nossa em terra alheia. Da ânsia de partir desse desterro, de evadir-se para a Luz divina, de agasalhar a alma lá onde a luz jamais perde a figura, onde tudo é suave e deleitoso, lança ao Criador a indagação do seu espírito sedento da paz e da ventura celestiais: Quando passarei desta saudade / Ao tabernáculo maravilhoso / Morada da vossa eternidade? 81
Há ainda que referir uma outra variante da temática da saudade que se compraz com a ausência física da mulher amada cuja imagem se conserva inalterada e albergada no pensamento e no espírito do poeta. Sobre isto, comenta Jacinto do Prado Coelho: “se a tradição neoplatônica do dolce stil nuovo e de todo o lirismo petrarquista bastaria para explicar” e dimensionar o que há de imaterial e puro na mulher objeto do amor desses poetas, “a experiência pessoal da separação, o viver longe pela memória e pela fantasia, decerto contribuíram para dar mais humana, mais comovente autenticidade ao processo ascensional que a poesia amorosa” de Camões e de outros poetas testemunham. “Se a visão da mulher obriga o poeta ao êxtase, é porque se manifesta, não como objecto de lascívia, mas como deslumbrante força espiritual”.82
Conforme entende Maria Vitalina de Matos, o que se impõe nessa relação amorosa não é a satisfação do desejo, não é a posse da mulher amada. O que o amante deseja é o amor. “E é neste amor do amor que reside a razão última da vivência camoniana”, da experiência dos poetas neoplatônicos.83
Com efeito, esses poetas que privilegiam a ausência da mulher amada como um bem, reservam para esta um lugar pouco relevante na cena amorosa, ela é apenas um objeto no qual o amor é projetado. Realmente, “o que eles amam é o amor, é o próprio fato de amar, [...] têm necessidade um do outro para arderem em paixão, mas não um do outro tal como cada um é; e não da presença do outro, mas bem mais da sua ausência!”84 Portanto, o amor que nasce e que se nutre no espírito, o amor segundo a doutrina neoplatônica, assume um estatuto de eternidade. Daí, transcender à própria morte, a mais radical, inexorável e irreversível forma de separação:

Que se amor não se perde em vida ausente,
Menos se perderá por morte escura:
Porque, enfim, a alma vive eternamente,
E o amor é efeito da alma, e sempre dura.85

Um dos motivos mais comuns da saudade radica na ausência do ser amado em razão da morte ou de um forçado afastamento. A dor da separação involuntária resulta em muitas composições que abordam dramaticamente toda a emoção da despedida ou da perda irremediável:

Alma gentil, que à firme Eternidade
Subsiste clara e valerosamente,
Cá durará de ti perpetuamente
A fama, a glória, o nome e a saudade.86

O poeta maneirista, na vivência excruciante do infortúnio presente, busca, no passado, o tempo da felicidade resgatável, descobrindo, mais das vezes, que no tempo em que, embaído, se imaginava feliz já não o era, na medida em que a ansiada e crida felicidade se põe sempre no tempo já decorrido em relação a qualquer tempo a que o homem se reporte. O que existe, em termos psicológicos, é a aspiração a estados venturosos, em algumas ocasiões, projetados no tempo futuro através do devaneio, e a nostalgia da felicidade já passada e perdida na lonjura do tempo e no obscuro sótão da memória.
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72 Maria Vitalina Leal de Matos, Op. cit., p. 65.
73 Diogo Bernardes, O Lima, p. 62.
74 Luís de Camões, Op. cit., vol. I, p. 282.
75 Id. Ibid., vol. I, p. 213.
76 Estevão Rodrigues de Castro, Canc. Fernandes Tomás, fl. 5r.
77 Francisco de Andrade, Canc. Fernandes Tomás, fl. 5v.
78 Diogo Bernardes, Obras Completas, p. 124.
79 Luís de Camões, Op. cit., vol. I, p., 111.
80 Frei Agostinho da Cruz, Obras, p. 311.
81 Frei Agostinho da Cruz, Obras selectas, p. 121.
82 Jacinto do Prado Coelho. Camões, um lírico do transcendente”, in: A letra e o leitor, pp. 15-16.
83 Maria Vitalina Leal de Matos, Op. cit., pp. 61-62.
84 Denis de Rougemont. O amor e o Ocidente, p. 64, apud Maria Vitalina L. de Matos, Op. cit., p. 62.
85 Luís de Camões, Op. cit. vol. II, p. 212.
86 Id. Ibid., vol. I, p. 213,

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