22 de nov. de 2010

O Amor Sensual

Contente vivi já, vendo-me isento
Deste mal, de que a muitos queixar via,
Chamam-lhe amor; mas eu lhe chamaria
Discórdia e sem-razão, guerra e tormento.
Camões

A tematização do amor, na lírica maneirista, segue duas tendências inteiramente opostas: uma que se manifesta enquanto imagem negativa e condenatória do amor carnalmente consumado, da expressão sensual do desejo amoroso; outra, derivada da idealização neoplatônica, que o revela em termos os mais positivos. A primeira tendência domina quase inteiramente o espaço poético, acentuando-se, no entanto, o seu cultivo a partir das três últimas décadas do século XVI; a segunda, menos privilegiada na lírica dos poetas, irrompe com mais freqüência na poesia de Camões, como será mostrado mais adiante. 
Nas poesias líricas que desenvolvem o tema do amor sensual, o que se observa, de modo geral, é a reiterada expressão de uma visão superlativamente sombria da experiência amorosa. Nela, o amor se configura como agente da acentuada instabilidade afetiva e emocional do amante, de aflitiva insegurança e de incertezas, como núcleo dinamizador de permanente desequilíbrio, que arrasta o homem a situações de natureza sumamente contraditória, senão oposta: alegria / tristeza; esperança / desespero; engano / desengano; amor / ódio, etc. 
A lírica de Camões prodigaliza exemplos dos malefícios do amor. Na opinião do poeta não pode no mundo haver tristeza / em cuja causa Amor não tenha parte. Daí, a sua indagação aos que sofrem padecimentos amorosos: se das dores de amor sois maltratados, / porque tanto buscais de amor as dores? 
Toda essa vivência negativa tem como conseqüência o desconcerto sentimental do homem enamorado, resultando em expressões de recusa ou de execração do amor, da experiência amorosa, da qual derivam dor e frustração constantes. O discurso que radica na experiência do amor denuncia, com cores fortes, os malefícios e os desenganos, as causas e os efeitos do drama amoroso. 
Baltazar Estaço, um dos mais ferrenhos defensores da poesia de cunho religioso e de exaltação ao amor divino, é autor de inúmeras composições altamente representativas da execração ao amor profano. No soneto, dado a seguir, o poeta vai discorrendo, verso a verso, com veemência depreciativa, sobre o potencial destrutivo do amor carnal, do amor entre homem e mulher: 

Mostra prudência sábia o que é minino, 
Apresenta-se manso o que é tirano, 
Aparece sagrado o que é profano, 
Profanando porém o que é divino. 

O siso quer fingir no desatino, 
A verdade pintar no falso engano, 
Disfarçar o proveito em nosso dano, 
Matando o natural e o peregrino. 

Imóvel se afigura o inconstante 
Amor, porque de falsa cor se tinge 
Para que nada dê, mas nada negue. 

Tal este amor se mostra e finge ao amante, 
Mas tal qual este amor se mostra e finge, 
Tal fica quem o busca e quem o segue. 54

Não satisfeito em enumerar as perfídias, que julga inerentes ao amor humano, o poeta, nos três últimos versos, abandona a verberação ao amor, transferindo-as para a figura dos que com ele se envolvem, numa clara atitude de repúdio extensiva aos amantes, rebaixados ao mesmo nível de falsidade e abjeção atribuído ao amor profano, [Mas tal qual este amor se mostra e finge, / Tal fica quem o busca e quem o segue].

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O amor sensual, consumado ou não no plano da experiência carnal, quando não é tragicamente ensombrado por toda sorte de males, revela-se irremediavelmente implicado com a saudade, a insatisfação, a perda através da morte ou da ausência física, com o sentimento da culpa e do pecado. Deste modo, o pathos amoroso dinamiza o campo subjetivo dos poetas a partir da experiência já vivida e da ausência da mulher amada, nutrindo-se das lembranças do passado, fazendo desse ser eleito pelo coração e da própria felicidade, perdidos no tempo e na distância, o objeto das suas reminiscências. Não importa se é uma ausência em razão de uma separação imposta pelo distanciamento no tempo ou no espaço, se é uma ausência causada pela morte ou pela perda da reciprocidade amorosa, o fato é que jamais o homem e a mulher caminham juntos, de mãos enlaçadas; jamais se encontram diante um do outro, mergulhados na horizontalidade do olhar de um no olhar do outro. Daí, os discursos da frustração: todo amor acaba no drama da separação ou da saturação; a amargura sucede irrecorrivelmente ao prazer; a alegria cede lugar à tristeza; o engano remete ao desengano e, deste, à melancolia, ao desespero. Emerge sempre dessa situação um lirismo subjetivo, prenhe de confessionalismo e confidências reveladoras da aflição e da mágoa, do desespero e da angústia, que sucedem às palpitações do coração, os enleios do sonho, que revestem na sua expressão um timbre de melancólico desalento e amarga resignação. 
A melancolia e a angústia, derivadas da mundividência maneirista, atravessam toda a poesia amorosa que tematiza o amor sensual, denunciando a já aludida visão pessimista e negativa do amor cultivada pelos poetas, que parecem não admitir a possibilidade do amor ser uma experiência iluminante, vivenciada em um clima de comprazimento e alegria, de ardência e intensidade erótica, na plenitude do gozo e na legítimidade da fruição do prazer carnal, cultivando a equivocada concepção de que o amor humano só propicia a frustração do desengano, a dor do sofrimento, a tristeza e o aniquilamento moral e afetivo do homem. 
Na obra de Diogo Bernardes, por exemplo, não há um só verso indicativo da alegria nascida da satisfação de um anseio amoroso. É sempre ele que, ardendo na chama de uma paixão não retribuída, se dirige à mulher amada, em termos de respeitoso queixume ou de magoada súplica: 

Quantas penas, Amor, quantos cuidados, 
Quantas lágrimas tristes, sem proveito, 
[...] 
Quantos mortais suspiros derramados, 
Quantos males enfim tu me tens feito. 55

Mesmo quando se queixa reiteradamente da perseguição da “inexorável Fortuna” e dos próprios “erros” cometidos, que tantos padecimentos lhe trouxeram, Camões culpabiliza o amor por suas vicissitudes amorosas. Ele é a causa das suas frementes angústias, padecimentos e agitações interiores: 

Erros meus, má fortuna, amor ardente 
Em minha perdição se conjuraram; 
Os erros e a fortuna sobejaram, 
Que pera mim bastava amor somente.56


Oh! Quão caro me custa o entender-te, 
Molesto Amor, que só por alcançar-te, 
De dor em dor me tens trazido a parte 
Onde em ti ódio e ira se converte! 57

Nem sempre o amor é apresentado na lírica camoniana em consonância com as doutrinas neoplatônicas, ou seja, como um princípio de harmonia e via de ascensão espiritual do homem. Ao contrário disso, nela o amor apresenta características e qualificações que denunciam o seu caráter disfórico. 
Na écloga II, por exemplo, o poeta põe nas falas de Agrário toda a linguagem da descrença na bondade do amor, concebido como uma entidade maléfica, portadora de tormentos, insânias e toda sorte de infortúnios: 

Não é amor, se não vier 
Com doudices, desonras, dissensões, 
Pazes, guerras, prazer e desprazer, 
Perigos, línguas más, murmurações, 
Ciúmes, arruídos, competências, 
Temores, mortes, nojos, perdições. 
Estas são verdadeiras experiências 
De quem põe o desejo onde não deve, 
De quem engana alheias inocências. 
Mas isto tem Amor, que se escreve 
Senão onde é ilícito e custoso; 
E onde é mor o perigo mais se atreve. 58

Martim de Castro Rio, do mesmo modo, manifesta seu desencanto com as pretensas alegrias do amor, para ele o crido engano [...] tormento eterno, / labirinto de Creta, / amor quimera, / nó gordiano, que por todas as suas potencialidades de infligir o sofrimento e a dor no peito amante merece ser concebido como metáfora do Inferno: 

Por força te chamara em vida inferno 
Quem te chamou amor se padecera 
Quanto por Lises, e por ti padeço. 59

Fernão Correia de Lacerda, por seu turno, ferido pelas muitas vicissitudes amorosas, acusa este monstro de amor como causa dos seus mais cruéis tormentos. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, em um dos seus sonetos, no qual lança acerbas queixas contra as crueldades, ardis e desenganos propiciados pelo amor entre homem e mulher, na certeza, na convicção de que o amor quando dá mor gosto e mor alteza / então é mais cruel, e desumano, ergue a sua voz, alertando contra os perigos, os enganos e a falsidade do amor, um sentimento malfazejo que: 

Põe debaixo do bem, um falso engano, 
Promete-nos prazer, dá-nos tristeza, 
Seus afagos e gostos, são crueza, 
O mor gosto que tem, é ser tirano. 
[...] 
Foi-me desenganar, por segurar-me, 
Assi quando me deu foi tudo vento 
Desenganou-me enfim para enganar-me. 60

Estevão Rodrigues de Castro exclama contra o amor que o conduziu a esperanças infundadas: Ai cego amor! Ai falsas esperanças, / De que eu no meu bom tempo me mantinha! 
Seja pelo mórbido gosto de serem tristes, próprio dos estados melancólicos, seja por considerarem o amor a causa de suas dores e desventuras, o fato é que os maneiristas exprimem em suas poesias uma imagem pessimista e sombria do sentimento amoroso, sempre conjugada ao sofrimento, à dor e ao desengano, invariavelmente dissociado da felicidade, da alegria e do prazer, e sempre em franca cumplicidade com uma perene sucessão de padecimentos. 
Esta forma de encarar o amor como fonte de males e sofrimento, de infelicidade e degradação, remonta às idéias de Santo Agostinho, à tradição platônica medieval e à filosofia renascentista européia das primeiras décadas do século XVI, que relacionam o amor com o mal, ou seja, com tudo quanto venha a contrariar ou a opor resistência ao princípio do amor divino, que o encaram como força malévola que seduz e enleia o homem, arrastando-o à degradação moral e à perdição de sua alma, na medida em que o desvia do Bem e do amor de Deus. 
São pouco freqüentes na lírica maneirista as expressões jubilosas do amor, os encômios à beleza e ao poder de sedução da mulher amada, bem como as manifestações do desejo ou da disposição dos amantes para a fruição dos deleites derivados da cumplicidade amorosa. Daí o particular interesse do soneto de Estevão Rodrigues de Castro, no qual o autor, praticamente, ressuscita um tipo de discurso hedonista, muito encarecido na poesia renascentista: 

Quem não se estará a vida encendendo 
Da vista vossa alegre, grave e honesta, 
No branco rosto, faces, boca e testa, 
Boninas, rosas, flores, lírios vendo? 

Não há bruto animal, feroz, horrendo, 
Que a alma vos não dê, sem ter requesta, 
Pois té o rio, o campo e a floresta 
Se estão de puro amor por vós perdendo. 

Isto falo, isto digo, e isto clama 
O mundo, e quem disser que falo muito, 
Agravo grande faz a vossa fama. 

Pois tal vos fez natura, linda dama, 
Deixai, se quereis, Dea, o doce fruito 
Colher de tal lindeza a quem vos ama. 61

Percorrendo pari passu os versos e as estrofes do soneto de Estevão Rodrigues de Castro, percebe-se a delicadeza das expressões que organizam o elogio à mulher amada, a exaltação das suas qualidades, sua beleza, conduzindo o discurso ao jogo de sedução, ao afloramento de uma vibrante e assumida sensualidade, que surpreende, justamente, porque colide com a postura de contenção e de recusa em relação às expansões eróticas, por parte dos maneiristas. 
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NOTAS
54 Baltazar Estaço, Sonetos[...], fl. 13v-14r. 
55 Diogo Bernardes, Flores do Lima, p. 45. 
56 Luís de Camões, Op. cit., vol. I, p. 257. 
57 Id. Ibid.,, anc. Fernandes Tomás, fl. 28v.
61 Estevão Rodrigues de Castro, Obras poéticas, p. 352.Op. cit., vol. I, p. 220. 
58 Id. Ibid., vol. II, p. 257. 
59 Martim de Castro Rio, Ms. ANTT 1559, fl. 214r. 
60 Fernão Rodrigues Lobo Soropita, 

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