10 de abr. de 2011

Maneirismo, Renascimento e Barroco: Relações.





Só uma época que tivesse experimentado a tensão entre a beleza e a expressão como seu próprio problema vital, podia postar justiça ao Maneirismo e à verdadeira natureza de sua individualidade em contraste com o Renascimento e o Barroco.
                                                                             Arnold Hauser 


O Maneirismo tem a sua gênese em um processo de transformação e de recriação verificado no âmbito das formas e temas da tradição clássico-renascentista que denunciam a sua radical oposição e transgressividade em relação ao cânone estético do Renascimento. 
Desprezando quase todos os legados da herança greco-latina cultuados à exaustão pelos humanistas ao longo do período renascentista, os maneiristas buscaram eliminar o hiato que o Renascimento estabelecera com a Idade Média, mercê do restabelecimento e da inclusão em sua poética de elementos estéticos da tradição medieval, inclusive da poesia lírica do poeta italiano Francesco Petrarca. 
Enquanto nos domínios das artes plásticas, a iconografia renascentista voltava-se equilibradamente tanto para os temas religiosos, quanto para os temas profanos, inclusive os mitológicos, nos domínios exclusivos da literatura, a religiosidade cristã não constituía assunto poético. O fascínio pelos temas profanos e mitológicos provocou o seu alastramento nos domínios da poesia, o amor passou a ser tematizado em termos sensuais e eróticos com uma liberdade sem precedentes. O humano sobrepunha-se ao divino, o esforço era no sentido de exalçar e valorizar a dignidade do espírito humano, conforme a lição do Humanismo. 
É oportuno lembrar que o Humanismo, uma das vigas mestras do Renascimento, radica na redescoberta do conjunto de elementos constitutivos da cultura da Antigüidade greco-latina (literatura, artes, história, ciência, filosofia, etc.), através de uma nova forma de estudá-los, livre dos fundamentos da escolástica, com o objetivo de resgatar o genuíno pensamento dos antigos, seus valores éticos, filosóficos, pedagógicos e estéticos cujos fundamentos se assentam na extrema valorização do homem e das suas obras. 
Os humanistas do Renascimento, em seu apaixonado culto à Antigüidade greco-latina, não se contentavam somente em reverenciá-la. Deslumbrados com o esplendor da cultura, da arte e da filosofia dos antigos, eles não mediam esforços em copiá-los, imitá-los, seguí-los pari passu, adotando artisticamente as suas modas, os seus exemplos, os seus modelos e a sua linguagem. 
Os maneiristas tomaram atitude absolutamente oposta à dos seus antecessores renascentistas perante a mesma herança e os valores humanistas do Renascimento. Assim, se nos domínios das artes plásticas maneiristas os temas religiosos, embora bem mais privilegiados na escolha dos artistas, passaram a conviver pacificamente com os profanos, o mesmo não se verificou nos domínios da literatura. Esta assumiu os rigores do ascetismo, no qual radicavam não apenas a prática de uma poesia voltada para assuntos morais e religiosos como o crescente desprestígio da poesia dedicada a assuntos profanos, principalmente a partir das duas últimas décadas do século XVI, quando a religiosidade exacerbada dos poetas passou a fazer da poesia um ato de fé, de contrição, de exaltação a Deus e de celebração ao amor divino. 
A tematização do amor humano, mesmo nos moldes neoplatônicos, foi combatida e evitada na mesma medida em que os temas mitológicos. O próprio petrarquismo, que tanto apaixonara a primeira geração de poetas maneiristas, passou a ser execrado e lançado ao ostracismo. 





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A compreensão precisa desta mudança, tão radical, exige que se examinem atentamente as diferentes condições históricas em que se instauraram ambos os estilos de época. 
O Renascimento originou-se do entusiasmo dos humanistas pela descoberta de um tesouro artístico e cultural até então desconhecido, que, em razão de sua excelência, renovaria e elevaria a arte em geral ao mais alto nível de qualidade que a liberdade e o requinte artísticos admitem, enquanto o Maneirismo emergiu dos escombros do mundo renascentista, da tristeza, do espanto e da insegurança gerados pela devastadora intolerância religiosa e pela crise sócio-política da época. Não há, portanto, entre Renascimento e Maneirismo senão antinomias, porquanto os traços definidores do estilo renascentista, o sistema de valores ideológicos que enformavam a atitude dos escritores desse período perante o homem e o mundo eram praticamente o reverso dos encontrados no estilo maneirista. Todos os valores existenciais positivos, a perspectiva otimista nas potencialidades do homem, a conciliação entre as coisas do corpo e as do espírito, a revivescência da herança clássica resgatada pelos humanistas, tão tipicamente renascentistas, desapareceram completamente no período maneirista. 
Não seria, portanto, fora de propósito considerar o Maneirismo “a estética do humanismo angustiado, do humanismo agônico”, de que fala José Guilherme Merquior, posto que a experiência fundamental do Maneirismo foi, sem dúvida, o dilaceramento, a cisão íntima entre o desejo de fidelidade ao utopismo do ideal clássico-heróico forjado na Alta Renascença e a sensibilidade a um mundo que negava cada vez mais brutalmente o nobre idealismo da paidéia humanista”.[i]
Uma das conseqüências do processo de mudança levado à prática pela estética maneirista foi a revivescência de um lirismo que o Classicismo renascentista inibira, rejeitara e entravara por força do próprio racionalismo e da contenção da subjetividade que lhes eram adstritos, ambos subjacentes às normas estabelecidas para a expressão poética. 
Além da ressurgência desse lirismo, tão praticado na poesia medieval portuguesa, também observam-se outras alterações nos domínios da expressão poética, como uma abertura sem restrições à exteriorização espontânea dos sentimentos e emoções sob a égide do subjetivismo individualista. Há ainda que referir à valorização da tradição poética medieval, na qual se inclui e se destaca a lírica de Petrarca, ambas bem representadas na lírica de Camões e de poetas seus contemporâneos que compuseram as suas obras na fase inicial da história do Maneirismo, quando ainda era possível a prática de uma poesia dimanada do encantamento dos poetas com as concepções do amor hauridas do neoplatonismo. 
Efetivamente, é no fecundo terreno dos princípios neoplatônicos que se estabelecem as bases filosóficas do Maneirismo, daí “a presença, em vários poetas maneiristas, de um persistente neoplatonismo, que, aliado ao catolicismo rigorista e penitencial, reforça e difunde a idéia do mundo e da vida terrena como efemeridade, sonho, fumo e sombra”.[ii]
O pessimismo, juntamente com a melancolia e a angústia existencial, constituem o tripé que sustenta o lado sombrio da visão do homem e da vida dos maneiristas. O pessimismo está em conexão com a crise do Renascimento e do Humanismo, ponto de partida para o esvaimento da atitude otimista e positiva perante o homem e o mundo que prevalecera no período renascentista, como já foi mencionado. 
O quadro geral da poesia da segunda metade do século XVI está bem distanciado do protótipo renascentista; em nada se assemelhando aos modelos oferecidos pela tradição clássica, resgatados pelos humanistas italianos, dos quais assimilaram a lição otimista da fé no homem, na vida e no mundo. Ao contrário disso, o que ressalta na poesia da segunda metade da centúria, principalmente nas suas derradeiras décadas e prolongando-se até ao eclipse do Maneirismo, é a expressão de uma imagem do homem e do mundo tenebrosamente deformada pelo pessimismo, pela tendência a encarar tudo e todos pelo lado negativo, que acentua, de modo dramático, a efemeridade da vida, a incoerência e o conflito presentes no mundo e no homem, o que assinala um decisivo distanciamento em relação aos pressupostos do cânone clássico-renascentista. 
O problema das divergências entre o Maneirismo e o Barroco se equaciona de maneira mais pacífica. Apesar de cada qual preservar a sua individualidade estética e as diferenças dela decorrentes, não chega a haver oposição entre ambos os estilos vizinhos, observando-se, inclusive, que muitos elementos temáticos e estilísticos próprio do estilo maneirista transitaram para o Barroco, quando da passagem de um estilo para o outro. Todavia, tais elementos, ao se transferirem para o novo estilo, não conservaram as mesmas significações que lhes eram atribuídas quando integrados no estilo maneirista, significando, assim, que a realidade que buscam comunicar já não é a mesma. 
A propósito das relações entre os três estilos de época, é oportuno chamar a atenção para a estranha forma de aproximação e de distanciamento que o Maneirismo e o Barroco estabelecem com o Renascimento, na medida em que se apropriam de temas e formas exclusivas do estilo renascentistas, que, como bem observa Aguiar e Silva, “intensificam, distorcem, transformam e recriam, de acordo com a visão diferente do homem e do mundo”, em consonância com seus particularizados princípios estéticos, “até chegarem à oposição ou à contradição com o estilo renascentista. E é nessa medida que se afirmam e se definem como estilos de época irredutíveis ao sistema de normas e padrões temáticos e formais do Renascimento”.[iii] Isto quer dizer que ambos os estilos epocais, apesar de instaurados em momentos e por motivações distintos, se afirmam como respostas diferentes, mas igualmente opostas, ao sistema de normas e padrões do Renascimento. 
Comentando as relações entre e Barroco e o Maneirismo, escreve Maria Lucília Gonçalves Pires que o primeiro, em certos aspectos temáticos e estilísticos, dá continuidade ao segundo, mas que dele “se distingue por essenciais diferenças de atitude perante o mundo e perante a literatura”.[iv] Por sua vez, Emílio Orozco Diaz entende que, se o poeta maneirista utiliza os elementos, temas e formas do Classicismo, de acordo com uma nova concepção estética que contraria o espírito de equilíbrio, de serenidade e de harmonia, próprio do Renascimento, “não será estranho que o Barroco faça a mesma utilização das formas, temas e motivos dessa tradição clássica, somada à persistência de todas as complicações e artifícios introduzidos pelo Maneirismo”.[v]
No âmbito da história da arte, como já foi dito, são muitos os autores que abordam o Maneirismo em suas obras; todavia, alguns dentre eles, além de não o definirem com clareza e precisão, ainda discrepam em relação a muitos dos seus aspectos. Arnold Hauser, por exemplo, critica, principalmente, a tese sustentada por Robert Ernst Curtius que considera o Maneirismo uma “manifestação de um elemento permanente no espírito ocidental e, em suma, que é uma possibilidade independente do tempo”.[vi]
Esse ponto de vista de Curtius, acatado por outros estudiosos do assunto, vê o processo histórico como um fenômeno que se repete ciclicamente, retomando no presente o que já ocorreu no passado, de forma regular. Tal concepção é tão pouco provável quanto a que vê no Maneirismo um mero período de transição entre o Renascimento e o Barroco, com a função fazer a ponte entre os dois estilos de época. 
Surgido no seio de um Renascimento moribundo, rompendo com as normas e padrões do Classicismo renascentista, o Maneirismo impôs-se como estilo autônomo, dotado de fisionomia própria, não podendo, portanto, ser considerado um mero processo de transição do Renascimento para o Barroco, da mesma forma que, em virtude da peculiaridade dos seus traços definidores, não se confunde com nenhum desses estilos vizinhos. 
É, portanto, de suma importância que fique bem clarificada a questão não apenas da oposição do Maneirismo ao Renascimento, mas antes e principalmente a legitimidade do seu conceito e o reconhecimento de sua autonomia como unidade estilístico-periodológica integrada no esquema da periodização da história literária portuguesa.
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NOTAS
i] José Guilherme Merquior, “Os estilos históricos na literatura ocidental”, in: Teoria Literária, p. 46.
[ii] Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maneirismo e barroco na poesia lírica portuguesa, p. 312.
[iii] Id. Ibid., pp. 469-470.
[iv] Maria Lucília Gonçalves Pires. Poetas do período barroco, pp.15-16.
[v] Emilio Orozco Diaz. Maneirismo Y barroco, p. 174.
[vi] Robert Ernst Curtius, op. cit., p. 281.


Zenóbia Collares Moreira. A poesia Maneirista Portuguesa. Natal: EDUFRN, 1º Edição, p. 15-19, 1999.


Imagem na postagem: Santa Maria Madalena. Óleo do pintor maneirista Venegas.




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