3 de mai. de 2011

O lirismo feminino sob o signo do modernismo: Estudo de poesias


ANA HATHERLY 

Ana Hatherly, pseudônimo literário usado pela poetisa Ana Maria Rocha Pereira, nasceu no Porto em 1929. Em 1958 estreou na cena literária com a obra Caminhos da moderna poesia portuguesa. Neste, como nos demais livros escritos entre 1958 e 1962, a poetisa ainda não atingira o nível de excelência que revelaria nos poemas de Sigma, livro publicado em 1965, sob o influxo da de movimentos de vanguarda, dos quais participou ativamente, principalmente o Grupo Poesia Experimental Portuguesa. Com este livro a poetisa inaugura uma nova fase de sua produção poética, até então ainda presa às formas poéticas mais tradicionalistas, mais comedidas em relação às novidades vanguardistas, que já haviam conquistado direito à cidadania nas letras lusitanas,desde o movimento Orpheu. Nos livros que se seguiram à publicação de Sigma, Ana Hatherly dá continuidade às incursões poéticas nos domínios do experimentalismo, fazendo uso de uma linguagem mais instigante, por vezes sutilmente irônico que, em alguns casos, parece incorporar ecos da poética de Álvaro de Campos, aliados a determinados artifícios do imaginário surrealista, aos quais imprimiu sua marca pessoal, conseguindo atingir resultados bastante expressivos. Tais peculiaridades conferem ao fazer literário da poetisa “um vigor e uma audácia que não são qualidades comuns a muitas das personalidades masculinas de poetas do mesmo período”.[1] Ana Hatherly publicou uma grande quantidade de livros de poesias, novelas, crítica literária e ensaios. 
Os dois textos que se seguem foram coligidos na obra de estréia da autora – Um ritmo perdido, no qual se revela inclinada a um tipo de discurso de tendência filosófica e moralizadora que, conforme foi dito antes, é muito distanciada da poesia que surge a partir de 1965, com Signo, o seu livro mais bem conseguido: 


MAS QUE BRANCURA... 


Mas que brancura impressionante 
De estátua idealizada... 
Acaso o tempo nos branqueia
Os ossos e o sentir? 

Sai daí, 
Humanidade pertuante do meu sonho! 
Queres ser alma e corpo 
De matéria que nem sequer existe? 


AQUELE QUE PROCUROU 
Aquele que procurou 
E não encontrou, 
É o homem desiludido. 
Aquele que não procura 
E tudo encontra 
E nada pode fazer do que achou, 
É mais que infeliz: 
Sabe a verdade. 

Com o livro Eros frenético, publicado em 1968, Ana Hatherly assume o exercício da poesia erótica, também praticadas por muitas outras personalidades femininas da poesia contemporânea incluídas neste ensaio. Comparando-se os dois poemas anteriores com os que serão dados a seguir, observa-se, logo à primeira leitura, a grande diferença entre as duas fases da poesia da escritora, antes referidas. A poesia que aparece a partir de 1965 perde o tom conceituoso e moralizador, cedendo lugar a uma expressão poética revitalizada por uma força dramática e lírica, por um ímpeto de paixão que perpassam os versos, na ânsia de exprimir a linguagem do corpo, a ardência do desejo, seus segredos, sua busca de consumação e êxtase: 

VOLÚPSIA

O corpo fala
na muda voz da idéia cruamente pura
seus poderes são pensamento-acto.
Oh sombra impaciente
ardes sem limite
O desejo tem espaços próprios
seus segredos
seus exaltados erros
Oh impúdico
Teu furor é inquieto
e imenso
Emaranhados neste anseio-sonho
nesta precisa-aposta


Tu – Eu
Neste ardente ardor
só tu és pausa
fuga
além-palavra
O nosso corpo freme
na adoração do grande olvido
Vagas sucessivas submergem
este ser-não ser
este querer-já-não querer
esta renovada festa-febre

Oh exultante
exaltante festa do tumulto
Sorri
Sorri-me
Eis o momento:
todas as penas imagináveis
te dissolvem nesta adoração
cruel
sem busca
abolida
Amor é fogo que arde e se vê
em ti
em mim
em tudo o que consome
Cegos
surdos
apenas te sabemos
apenas te queremos
fatal fome

Bataille ensina que pelo erotismo se transforma a atividade meramente sexual (esta concernente a todo animal) em uma “busca psicológica, em um momento de auto conhecimento e de questionamento do ser, configurando-se, assim, o erotismo, como um aspecto da vida interior do ser-humano, que é sempre vivenciado como transgressão e enriquecimento”.[1]
Na poesia do século XX, poetas e poetisas lançam-se nessa busca psicológica sobre a qual escreve Bataille ou simplesmente na busca transgressiva de desafiar os tabus culturais que durante tantos séculos cercearam, através dos mais variados mecanismos da censura, a expressão da sexualidade e do erotismo na poesia. Qualquer poesia que ousasse transpor os limites desses tabus servia de argumento para rotular o como obsceno, libertino e quantos epítetos servissem para relegar o autor e a obra ao mais desprestigiado nível da escala da valorização estética. As mulheres, principalmente, não ousavam abordar tais intimidades senão veladamente, através de um discurso que girava em torno da expressão amorosa do sentimento, sem alusões ao corpo, às pulsões do desejo e, menos ainda à fruição do amor sensual, dos prazeres da carne.

FERNANDA BOTELHO 


Natural no Porto, em 1926, Fernanda Botelho, além de poetisa talentosa, é romancista de primeira linha, consagrada dentro e fora do país. Sua vida literária iniciou-se com a colaboração que deu às folhas de poesia da revista Távola Redonda. Seu livro de estréia, As coordenadas líricas (1951), teve excelente recepção no meio literário. 
A poesia de Fernanda Botelho é desconcertantemente antilírica, dura e pontilhada de sarcasmo, notadamente quando visa comunicar a sua estranha e particularíssima visão de mundo, quase sempre filtrada pelo crivo da ironia e do cinismo mais escancarado. Estas são afinal as armas de defesa que a poetisa utiliza para ocultar amordaçar a sua natureza emotiva, o seu latente lirismo, os quais rejeita e esconde. 
Seguem-se algumas poesias da escritora coligidas em seu livro de estréia, As coordenadas líricas, 1951: 


AS COORDENADAS LÍRICAS 

Desviou-se o paralelo um quase nada 
E tudo escureceu: 
Era luz disfarçada em madrugada 
A luz que me envolveu. 
A geometria forma de meus passos 
Procura um mar redondo. 
Levo comigo, dentro dos meus braços, 
Oculto, todo o mundo. 
Sozinha já não vou. Apenas fujo 
Às negras emboscadas. 
Em cada esfera desenho o meu refugio 
- as minhas coordenadas. 

LEGENDA 

Como quem sente 
na legenda do presente 
o fim duma história breve, 
vou vivendo um sonho intacto 
num pesadelo crescente 
-uma luz fecunda e leve 
nos olhos pardos dum gato. 


MENTIRA 
Mentira passada, 
Foi enredo? 
Oi, medo? 
Não foi nada 
Agora, tem afluências 
E confluências. 
Carta hidrográfica incoerente 
E sem fim. 

Do rio-mentira com sua nascente, 
Do rio-ameaça 
Que se abraça 
Em mim. 

AMNÉSIA 
Posso pedir, em vão, a luz de mil estrelas 
que apenas obtenho este desenho pardo 
que a lâmpada de vinte e cinco velas 
estende no meu quarto. 
Posso pedir, em vão, a melodia, a cor, 
e uma satisfação imediata e firme. 
(A lúbrica face do despertador 
é quem me pesa e oprime.) 
e peço, em vão, uma palavra exacta 
numa fórmula sonora, que resuma 
este desespero de não esperar nada, 
esta esperança real em coisa alguma. 
E nada consigo, por muito que peça! 
E tamanha ambição de nada vale! 
-que eu fui densa e tive uma amnésia: 
esqueci quem era e acordei mortal. 


FERNANDA LEAL 

Maria Fernanda Leal nasceu em Lisboa, e 1942. Seu livro de estréia, Do outro lado do ar,data de 1983.Nela a concisão da expressão poética está ao serviço de um estilo depurado, construído pelo viés de uma rigorosa síntese, sustentada pelo uso da palavra exata, da expressão precisa, sem volteios retóricos ou floreados metafóricos. 
Apesar da brevidade de alguns textos, estes, no entanto, abrem-se para diversas leituras e múltiplas interpretações. 

ALELUIA 
Sou pássaro santo 
Ovo de Páscoa 
No meio da família. 
Fecham-me viva 
À força 
Nos beijos. 
Só cheiros 
A saliva 
Aleluia! 

ANOITECER 
Um mundo nascido 
Dentro do meu quarto, 
Ao som refractado
Do canto do sol 
Deslizam por mim 
Cheios de penumbra 
Os nós destacados 
Da noite a chegar. 

Despedida 
É sentir que a alma se entristece 
Por deixar um amigo ao fim do dia 
É beijar em cada dia o sol que desce 
Sem deixar o sol da véspera que nos grita 
É correr sem ver a praia rente ao mar 
E sentir a brisa branda na corrida. 

Despedida
É ver fugir o vento na cortina 
Quando ele se revolta ao pé da gente 
É ficar à beirinha do passeio 
E fechar o ar da noite em nosso peito 
P´ra apagar um candeeiro em cada esquina.

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Nota 

[1] G. Bataille, O erotismo, p. 56.

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Zenóbia Collares Moreira. "O lirismo feminino sob o signo do modernismo". In: O Itinerário da poesia feminina portuguesa: Século XX. Cap. II.






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