8 de set. de 2011

A poesia feminina no limiar do século XXI (Continuação)

CECÍLIA BARREIRA

Professora universitária, ensaísta e poetisa, Cecília Barreira nasceu em Lisboa em 1957. 
Como pesquisadora, vem orientando os seus interesses de pesquisa para o domínio dos universos do feminino. 
Estreou-se na literatura em 1999 com o livro 15 Anos de Alguma Poesia, seguido, em 2003, de 7 &10, livro do qual foram colhidas as poesias dadas a seguir, nas quais avulta o mesmo difuso sentimento de melancolia e pessimismo presentes nas poesias de outras representantes da geração dos anos 90:

Nunca é demais
falar dos braços que
percorrem corpos.
Das amêndoas em flor. Das árvores
felizes. Nunca é
demais repetir a
beleza esfuziante.
E que fazer perante
o corpo que envelhece,
o sonho que se trai,
o perdão que não
houve; como
entender o outro
lado da fronteira
onde o medo e a
morte espreitam?

Quando te vi percebi
que a loucura se
sente pela solidão
que nos habita.
Toda a loucura é
uma forma de nos entregarmos
ao eu mudo e queda
Não sei transportar
a vida. Sei para onde
me leva a loucura.

Sei de esplêndidos
sóis que povoam
os desenhos de criança.
Sei de universos
Paralelos e vertigens.
Mas não sei transportar
a vida. Espero que a
loucura me mate
devagarmente.

Nuvens negras
céus densos. Cores
que chocam nas
paisagens. Viajar
é ser comprido.
Viajar é a forma
que temos de
nos ausentarmos
com o perdão dos
outros.

GRAÇA PIRES

Poetisa e ficcionista, Graça Pires foi contemplada com galardão várias vezes ao longo de sua carreira, tais como o Prêmio Nacional de Poesia 25 de Abril, em 1995; o Prêmio Nacional de Poesia Fernão de Magalhães Gonçalves, 1997; o Prêmio Revelação de Poesia da associação Portuguesa de Escritores, em 1998; o Prêmio Literatura Maria Amália Vaz de Carvalho, modalidade poesia, 2003.
Graça Pires é uma das mais autênticas representantes da geração dos anos 90, ou seja, uma geração que se define “por um generalizado e difuso sentimento de melancolia”, por um gosto pela poesia do quotidiano, visto através dos mais variados ângulos. Na poesia que se segue, a autora imerge no âmago de sua melancolia, levada pela memória. Sua linguagem simples afirma-se numa zona em que uma extrema sensibilidade se entrelaça com uma serena e apurada sabedoria poética:

INTERIORIDADE

Aqui estou, cercada de mim,
melancolia trazida
de interior de um bosque,
silhueta a preto e branco
na figuração de um pássaro em vôo lento.

Há quanto tempo,
só eu sei quanto,
as amarras de um barco
se quebraram,
no interior frágil
do instante em que fui vento,
ou apenas um abandono breve,
como as mãos no acto de dar.


No ângulo do grito e da língua
se explica a leveza das lágrimas,
circunferência no interior das pálpebras,
longínquo lago na cintura dos lábios.
Cheguei ao lugar onde se cruzam
todos os ventos sem hálito
e chamo pelo nome os frutos e a fome,
para que ninguém se comprometa
ao tocar nos meus ombros.

Em outras poesias perpassa um sopro de discreta sensualidade, a relação com o próprio corpo vivo e desejante gera a poesia – subversivamente/ o instinto me descomanda, diz a voz feminina do texto. A sua fragilidade, no entanto não se entrega ao voyeurismo do leitor. A poesia consegue ser íntima sem resvalar para o confessionalismo direto e explícito da experiência erótica:

MARGINALIDADE
Subversivamente 
o instinto me descomanda.
E a magia inconsciente
do meu corpo
é um jogo clandestino
de gestos sem eco.
Há um ritual divino
nas carícias sensuais
em que me invento.
Nada me torna inocente
dos meus próprios sentidos
quando solto
as linhas marginais
do pensamento
e me seduzo
com gostos proibidos.
Sempre são excessivos os desejos de quem sonha
a vida toda um momento.
A solidão é como o vento.
É nos olhos dos mendigos
que a noite se prolonga por mais tempo.


ENCANTAMENTO

Amanhã, quando o chão for a construção da nudez
e houver, entre os teus olhos
e os meus, um súbito musgo,
não se repetirá, meu Amor
o cambalear das palavras na garganta,
nem diremos a interdição dos lagos
na saliva esgotada no sal.
Alguns corpos inventam
A dimensão incondicionada da noite,
Exposta e cúmplice como a terra.
Nós saberemos, lentamente,
O mel inquietante dos dedos.
Em nome da primeira vez que amei,
Tracei na pele um movimento eterno de combustão e dor,
Peças sensíveis da engrenagem
Em cada palavra
Definitivamente pronunciada,
Há uma lâmina de sombras vermelhas.


PELA NOITE À ETERNA DOR SE CHEGA

Pela noite à eterna dor se chega
cruel é a terra, diversa terra
quando teu rosto se esvai
e a névoa com voz de pranto
cai jamais leve sobre nós.
De breve uso, cresce no peito
uma tímida pálida alegria
precioso corpo luz, borboleta
de asas nítidas e tranqüilas
que vigia o coração dos mortos.


Diz-me secretas brandas palavras
Porque sou refúgio e escombro
De um vasto dia, áspero exílio
Nas suaves sílabas de precisos
E curvos juncos, clarão sem sol.
Desce então pelo fulgor da luz
Espírito suspenso em minhas mãos.
A espera é movimento cego.
Desce, sonâmbulo, extenso amor

A poesia de Graça Pires fala de amor, de desejo, de dor (Em nome da primeira vez que amei,/ tracei na pele um movimento eterno de combustão e dor), mas também viaja de regresso à infância, busca-se na miragem e no longe os sons, os rostos, as paisagens que amou. Tudo está intacto na cena rememorada: À infância regressa-se solitariamente,/ subindo um rio sem margens,/ até ao lugar em que a nascente/ se confunde com o tempo/ e o tempo se transforma em espanto. A busca das palavras, a procura da poesia, percorre muitas poesias, entremeadas com as tematizações do amor, do passado, dos estados de alma (no meio das palavras,/ procuro apenas um gesto/ ou um sombra [...] Em cada palavra/ definitivamente pronunciada,/ há uma lâmina de sombras vermelhas).

Zenóbia Collares Moreira Cunha

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