13 de dez. de 2011

Os Lusíadas: Parte II. Manifestações do Maneirismo na Epopéia Camoniana.


Segundo consta na história literária portuguesa, a intencionalidade de Camões, ao iniciar a composição de “Os Lusíadas” era a de seguir os modelos clássicos da epopéia, legados pela “Odisséia” de Homero e na Eneida de Vergílio, conforme os ditames renascentistas, ainda em voga na juventude de Camões, quando, aos vinte e um anos, deu início à sua epopéia. Considerando que esta só foi publicada após o retorno do poeta do prolongado exílio no Oriente, já alquebrado, desiludido, pobre e doente, é evidente que o trabalho foi revisado e alterado, especialmente no que toca os excursos do poeta. A pátria que Camões deixara em 1549, aos vinte e oito anos de idade, quando foi desterrado para Ceuta, já não era a mesma ao retornar em 1567, como ele escreve na estância 145 do Canto X, onde, cansado e desiludido, pede licença à Musa para encerrar o canto:

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
D´hua austera, apagada e vil tristeza. (Canto X, Est. 145)

E não sei por que influxo de destino
Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o rosto. (Canto X, Est. 146)

Adaptação para o português atual: Não posso mais cantar, Musa, não posso mais, porque tenho desafinada a lira e a voz enrouquecida (cansada) e não pelo esforço de cantar, mas por ver que venho cantando a gente surda e endurecida (indiferente). O favor com que o gênio mais se inspira não me concede a Pátria, não, porque está mergulhada no amor da cobiça e na aspereza de uma rigorosa, inerte e deprimente tristeza. [...] E não sei por qual influência do destino a minha Pátria não tem uma alegre altivez e um geral contentamento, que levantam os ânimos continuamente e tornam alegres os semblantes para todos os trabalhos.) Esses versos são a expressão do desengano, da tristeza e da dor de Camões causadas pela decadência generalizada a que fora arrastada a nação, sob o desastroso reinado de D. Sebastião.
Comparem-se os versos das estâncias 145 e 146 do Canto final do poema, com as três das cinco estâncias que compõem a Proposição, abaixo transcritas, todas impregnadas da euforia e do entusiasmo pelo poema, absolutamente contrastantes com o tom amargurado, lamentoso e desanimado do poeta, neste final.

III

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Calle-se de Alexandro e de Trajano
A fama das victórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram!
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

IV

E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Daí-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente;
Porque de vossas águas Phebo ordene,
Que não tenham inveja às de Hipocrene.

V

Daí-me hua fúria grande e sonorosa
E não de agreste avena ou frauta rude,
Mas de tuba canora e bellicosa.
Que o peito acende e a cor ao gesto muda!
Daí-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, a que Marte tanto ajuda,
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso!

A diferença entre o início e o fim da epopéia é gritante e poderia ser considerada uma contradição inadmissível do poeta. Todavia, esta aparente contradição se esvai ao enquadrarmos a epopéia nos princípios da estética maneirista.

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Em se tratando de um canto épico, inspirado no modelo clássico da epopéia, deveria ser concluído com o mesmo entusiasmo ufanista que o iniciara, exaltando a História de Portugal sua contemporânea. A explicação para esse grave desvio só pode ser dada pela ótica do Maneirismo já triunfante nas artes e na literatura que eram produzidas em Portugal.
Somente em 1572 deu-se a publicação de “Os Lusíadas”. Portanto, Camões teve bastante tempo para fazer alterações no poema, fazendo cortes, acrescentando, modificando, especialmente a parte dos seus excursos. O poeta entusiasmado e vibrante que começara a escrever a epopéia já perdeu a crença no “Ilustre peito lusitano” e o estímulo para exaltar as suas glórias, o poeta que, ainda jovem, assimilara a lição renascentista de otimismo, de confiança e de fé no homem, haurida na lira de António Ferreira e de Francisco Sá de Miranda, já não existia, esvaira-se na visão da vida, do homem e do mundo pessimista, melancólica, amarga e desiludida dos maneiristas, já presentes em sua poesia lírica.
Os poetas que conviveram com Camões, após o seu retorno para Portugal, dão conta das mudanças ocorridas no contexto histórico português, referem-se às desgraças e às dores que testemunharam, mencionam o pessimismo, o desengano e a inquietação que afetavam a comunidade social da qual eles faziam parte e que se refletem dolorosamente em suas obras, como bem exemplificam os seguintes fragmentos de poemas do poeta maneirista Vasco Mousinho de Quevedo, contemporâneo de Camões:

Não vês de nossos tempos as mudanças,
Mil confusões de tristes, e contentes,
Transformações de Reinos e de gentes,
Mortes, desterros de uns, d’ outros bonanças,
[...]
Casos de eterno e imortal espanto,
E dignos de imortal, e eterno pranto? .

Dando continuidade às comparações dos contrastes, agora entre a Dedicatória e o Epílogo, nas quais o poeta se dirige ao jovem rei D. Sabastião. Todavia, na Dedicatória, que ocupa treze estâncias, o rei é coberto de louvações e de elogios:

VI
E vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antigua liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena christandade;
Vós, ó novo temor da maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dadas ao mundo por Deus, que tudo o mande
Pêra do mundo a Deus dar parte grande;

No EPÍLOGO da epopéia, mais precisamente a partir da estância 146, ou seja, logo a seguir ao amargo pedido do poeta à Musa para cessar o canto, tem início as onze estâncias dedicadas ao discurso de encerramento do poema, dirigido ao rei D. Sebastião. Todavia, o tom do discurso traz a mesma amargura que caracteriza todo o epílogo. Em vez de louvações ao jovem monarca (que não as merecia), o que se vê é um longo desfiar de conselhos e de advertências, chamando-lhe a atenção para as qualidades do povo que o serve, pedindo que o livre de leis injustas, dê-lhes ocupação segundo os seus talentos. Os padres e monges são criticados pelos seus vícios e cobiça, quando deveriam fazer jejum, orar e penitenciarem-se. Depois de tecer alguns elogios ao poema, o poeta encerra a epopéia, oferecendo-a a D. Sebastião e sugerindo que o jovem rei será cantado por ele no futuro, se realizar algum feito digno de um canto. (que “a mente premonitória” do poeta prevê que ocorrerá). Aí então, diz o poeta: “creio que a minha já estimada e alegre Musa há de exaltar-vos em todo o mundo, de modo que em vós seja visto um novo Alexandre, sem invejardes as glórias de Aquiles”. Com esta honrosa saída, o poeta livrou-se da má vontade do rei para publicar a sua obra, e evitou ser hipócrita, exaltando um rei megalomaníaco, desastrado, que nenhum louvor merecia. Camões estava em seus últimos momentos de vida, quando soube da desastrosa derrota e da morte do rei na batalha de Alcacer-Quibir, contra os Mouros, em Marrocos.
Ainda no início do Canto X, (vv.5-8 e est., 9), há um exórdio do poeta que, já cansado e sem ânimo para finalizar o poema, interrompe o canto para pedir a ajuda de Calíope, dizendo: “Aqui, neste trabalho final, te invoco, minha Calíope, para que, em recompensa do que eu escrever (concluindo o poema), como em vão pretendo, devolvas-me o gosto de escrever que o estou perdendo.” Na estância seguinte, continua seu lamentoso discurso para a Musa, impregnado de pessimismo que evidencia a atitude melancólica, o desânimo, e a contemplação da morte, tipicamente maneiristas, prodigamente presente, também, na lírica camoniana. Esta irrupção de um discurso na primeira pessoa na epopéia, voltado para as dificuldades do poeta, rompe com o cânone do classicismo renascentista, na medida em que o referente épico torna-se questionável:

Vão-se os anos descendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto, nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono;
Mas tu me dás que cumpra, ó gran Rainha
Das musas, co´o que quero á nação minha!

No Canto V. (est. 97-99), o excurso do poeta para finalizar o canto, soma nove estâncias, ao longo das quais comente outro desvio, desta vez para tecer críticas a Vasco da Gama porque este, em seu longo discurso para o rei de Melinde, relatando as façanhas dos heróis portugueses, demonstrou desconhecer o valor das artes. O poeta confronta os feitos e as ações grandiosas dos heróis narrados pelo Gama com a arte (versos ou monumentos) que os glorificam, defendendo a importância da arte, como meio de perpetuá-los:

Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente,
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelentes
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe a arte, não se estima. (Canto V, est. 97)


Por isso, e por falta de natura,
Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Enéias nem Aquiles feros.
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez e tão austeros,
Tão rudos e de engenho tão remisso,
Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso. (Canto V, est. 98)

Os desvios maneiristas são mais acentuados a partir do final do Canto IV, justamente na metade do poema.
Estas críticas indevidas ao Capitão Gama põem em suspensão, mais uma vez, o referente épico e, como tal, colide com os padrões clássicos da epopéia. Todavia, o mais grave desvio dos princípios norteadores da epopéia é concretizado no conto IV, no episódio do Velho do Restelo, um dos mais belos e tocantes de “Os Lusíadas”. Neste é a voz do velho de “aspecto venerando” que irrompe no cais de embarque, verberando contra a viagem da esquadra comandada pelo Capitão Vasco da Gama. Com efeito, não cabe num poema épico, que tem como ponto de partida a viagem marítima que descobriria o caminho para a Índia, a presença de uma voz que a execra e amaldiçoa, em um longo e exasperado discurso que a todos emudece. Complementa e reforça a fala do ancião, o coro lamentoso e lacrimejante das mães, irmãs e esposas dos mareantes que falavam sobre a infelicidade que a viagem lhes trazia.
Esta diferença contrastante entre o começo e o final da epopéia, lembra-me o caso das duas esculturas da Pietá, de Miguelangelo. A primeira, exposta na Basílica de São Pedro, no Vaticano, foi esculpida na juventude do artista, quando ele vivia a plenitude da sua fase renascentista e, portanto, seguia o cânone da escola traduzidos no comedimento da expressão de tristeza da Virgem em harmonia perfeita com a serenidade da expressão fisionômica do Cristo morto em seus braços. A segunda escultura da Pietá, guardada no museu de Florença, foi produzida quando Miguelangelo já se tornara um exponencial do Maneirismo na arte italiana. São espantosas as expressões de desespero, de dor e de angústia da Virgem e do corpo contorcido e crispado de Cristo, que ela tenta abraçar, também se contorcendo e vergando sob o peso do sofrimento. Foi ao ver as duas esculturas que despertei para o que poderia ter ocorrido com a evidente contradição entre o começo da epopéia e o seu final.

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