11 de dez. de 2011

OS LUSÍADAS: Parte IV.- O Polêmico episódio doVelho do Restelo".


Os desvios maneiristas são mais acentuados a partir do final do Canto IV. Justamente na metade do poema concretiza-se a mais grave fuga aos princípios norteadores da epopéia. No episódio do Velho do Restelo, um dos mais belos e tocantes de “Os Lusíadas”, a voz de um velho de “aspecto venerando” irrompe no cais de embarque, verberando contra a viagem da esquadra comandada pelo Capitão Vasco da Gama. 
Com efeito, não cabem críticas tão negativas num poema épico que tem como ponto de partida exaltar a viagem marítima em busca do caminho para a Índia, que se propões a louvar os feitos gloriosos dos portugueses, dentre os quais a expansão do império proporcionada pelas navegações ocupa um lugar de destaque. O humanismo de Camões falou mais alto que a coerência do Canto, levando-o a pôr na fala do Velho as palavras que traduziam a sua própria ideologia, contrária, como a de muitos cavalheiros, a tais viagens, já criticadas por Gil Vicente no Auto da Índia.
89

Em tão longo caminho e duvidoso,
Por perdidos as gentes nos julgavam,
As mulheres com choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperado e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.

90
Qual vai dizendo: - Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Porque me deixas, mísera e mesquinha?
Porque de mi te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento
Onde sejas de peixes mantimento?-

91
Qual em cabelo: - Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis amor que viver possa,
Porque is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha e não vossa?
Como, por um caminho duvidoso,
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento,
Quereis que com as velas leve o vento?-

92
Nestas e noutras palavras que diziam,
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e mininos as seguiam
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quási movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão co elas se igualavam.

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Não foi por acaso que João de Barros denominou a praia do Restelo, às margens do Tejo, de “praia das lágrimas”. É claro que não era em meio a festejos e alegria que ocorria o embarque dos navegantes, posto que era sabido que mais da metade pereciam no caminho ou em lutas. Camões sabia dos horrores que aconteciam nestas viagens, depois relatados no livro Viagens trágico-marítimas. A mãe que se expressa, na estância 90, simboliza bem a velhice que se deixa desamparada. Da mesma forma, a dolorosa e comovente fala da esposa que questiona a viagem, a censura e acusa, proferindo as mais belas e poéticas palavras de amor, soa como um protesto não apenas dela, mas do povo, homens, velhos, mulheres e meninos que, consternados, assistem ao embarque dos seus familiares e amigos. Estes discursos que ecoam como a voz do povo, funciona como um pano de fundo para o que viria a seguir: a irrupção, no meio da multidão, de uma voz irada e sonora que se insurgia contra a Viagem: 

94
Mas hum velho, de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada hum pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiência feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

95
-Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cua aura popular que a honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exprimentas!

96
Dura inquietação da alma e da vida,
Fonte de desamparos e de adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana.

97
A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo de algum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

O emotivo discurso da execração à Viagem vai até a estrofe 104, que finaliza o canto. Como se pode ver o discurso do Velho é uma prolongada e exacerbada crítica ao que está nos fundamentos da Viagem: a “glória de mandar”, a “cobiça”, a vaidade da fama, a que o Velho chama de “fraudulento gosto,” às quais são a motivação primeira das navegações. Servem para enganar “o povo néscio”, a quem, na verdade, só trarão desgraças, desamparos, adultérios, ruínas econômicas, perigos e mortes.
O próprio episódio é polêmico, na medida em que está indevidamente inserido em um poema épico que, que se propõe a glorificar e exaltar o que constituía a maior glória da História de Portugal e o maior orgulho dos portugueses: a Viagem de Vasco da Gama que descobriu o caminho para a Índia.
Concordo com o ponto de vista de António José Saraiva, segundo a qual o Velho do Restelo seria um porta-voz do próprio Camões, expressando a ideologia cavalheiresca do poeta, contrária às navegações. Seja qual tenha sido o motivo da inserção deste episódio na epopéia, ele se afirma como uma contradição ao que o poeta propôs ao iniciar o poema. Todavia, este pormenor não diminui o imenso valor de “Os Lusíadas”, apenas desloca o poema para outro estilo de época, ao qual Camões pertenceu: o Maneirismo. 
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Zenóbia Collares Moreira Cunha.

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