3 de jan. de 2012

Luís de Camões. “OS LUSÍADAS” - PARTE I


A idéia de escrever uma epopéia não teve a sua gênese em Luís de Camões. Já no século XV se manifestava tal idéia e o desejo de elaboração de um canto épico sobre a expansão portuguesa e as glórias da nação. Duas causas contribuíam para esse anseio generalizado: por um lado, a evolução literária, com o renascimento e o gosto pelos modelos da antiguidade. Os humanistas desejavam ressuscitar os gêneros clássicos, entre os quais se contava a epopéia, representada sobretudo pelos poemas homéricos – a Illiada e a Odisséia- e pela Eneida de Virgílio. Por outro lado, havia o tema a impor o livro: as façanhas marítimas dos portugueses, indo com seus barcos a todos os pontos do mundo. O que faltava era um grande poeta para escrevê-la. Camões surge, assim, no momento próprio, quando ele completa os vinte e um anos de idade. Todavia, vale salientar que o poeta não escreveu Os Lusíadas em pouco tempo. Não! Ele foi compondo a sua epopéia ao longo da vida procelosa que viveu longe da pátria, só vindo a publicá-la depois que retornou a Portugal, já envelhecido, pobre e doente. Daí os desvios maneiristas presentes em vários cantos na epopéia, notadamente nos exórdios e no último canto, pejado de melancólica tristeza, tão contrastante com o entusiasmo ufanista da Proposição. 

A ESTRUTURA EXTERNA

· A Proposição – parte introdutória, na qual o poeta anuncia o que vai cantar (Canto I, estrofes 1-3) · A Invocação – pedido de ajuda às divindades inspiradoras (A principal invocação é feita às Tágides, no canto I, estrofes 4 e 5, ás Ninfas do Tejo e do Mondego, no canto VII 78-82 e, finalmente, a Calíope, no Canto X, estrofe 8)· A Dedicatória – oferecimento do poema a uma personalidade importante. (Esta parte, facultaria, pode ter origem nas Geórgicas de Virgilio ou nos Fastos de Ovídio; não existe em nenhuma das epopéias da Antiguidade)· A Narração – parte que constitui o corpo da epopéia; a narrativa das ações levadas a cabo pelo protagonista. (Começando no Canto I, estrofe 19, só termina no Canto X, estrofe 144, apresentando apenas pequenas interrupções pontuais). Há ainda a mencionar os Escursos: reflexões, exortações, queixas, explícita ou implicitamente expressos na primeira pessoa pelo Poeta. A ele cabe iniciar e concluir o poema, fechar sete dos dez cantos, retornar quatro vezes à invocação da(s) Musa(s) e tecer comentários.

2. OS PLANOS NARRATIVOS

Obra narrativa complexa, Os Lusíadas constroem-se através da articulação de três planos narrativos, não deixando, ainda assim, de apresentar uma exemplar unidade de ação: O plano da viagem, o plano da história de Portugal e o plano mitológico. 
O plano narrativo principal é o que narra a viagem de Vasco da Gama à India. Continuamente articulado a este e paralelo a ele surge um segundo plano - o mitológico - que diz respeito à intervenção dos deuses do Olimpo durante a viagem. Encaixado no primeiro plano, tem lugar um terceiro, que é constituído pela História de Portugal, contada por Vasco da Gama ao rei de Melindo, por Paulo da Gama e por entidades dividas que vaticinam futuros feitos dos Portugueses. 
Segundo a visão de António José Saraiva, a viagem do Gama, desde a partida de Lisboa até ao desembarque na Ilha de Vênus, constitui a parte propriamente da narrativa. A viagem, na qual esperaríamos encontrar o núcleo vital do poema, não constitui realmente a ação, nem a intriga, nem as personagens propriamente ditas. Falta-lhes autonomia e, inclusivamente, uma mola intrínseca. Para que a viagem do Gama constituísse uma ação, seria necessário que os seus protagonistas se debatessem com as dificuldades e as resolvessem graças às suas forças e engenho. Não vemos o Gama arriscar-se e agir, desenredar-se de intrigas, nem manchar-se de sangue (exceto na escaramuça com indígenas no episódio de Fernão Veloso, por ele próprio referida ao rei de Melinde). Serve apenas para fazer discursos, para recitar os belos discursos de Camões. Falta-lhe inteiramente a presença, e não nos deixa uma recordação. Em suma, nem Gama nem os seus companheiros são verdadeiramente personalidades. Por outro lado, pode-se dizer que a viagem não tem história nem enredo. 
A partir do momento em que os entrevemos no meio do oceano, os nautas limitam-se a deixar-se transportar nas mãos dos deuses. Se estes não existissem, nunca saberíamos como é que os nautas chegaram à Índia, que perigos dominaram e de que maneira. A unidade orgânica do relato da viagem não reside nem na personalidade dos heróis, nem em qualquer intriga intrínseca à própria viagem. Há, todavia, no que respeita à luta com o mar, quadros de relevo e precisão, como a tromba marítima, o fogo-de-Santelmo e o escorbuto, e todo o canto V, um dos melhores do poema. Mas esses episódios, onde falta sempre a presença humana, são dados de forma descritiva, exemplificativa, numa seqüência oratória, e não narrativa, no discurso de Gama ao rei de Melinde. 
Por outro lado, a História de Portugal, exposta em discursos do Gama ao rei de Melinde e de Paulo da Gama ao Catual, além dos discursos proféticos de Júpiter, de Adamastor, da ninfa Sirena e de Tétis, em relação à história futura , não tem unidade intrínseca. Nota-se a ausência de uma ação de conjunto e a inexistência de heróis. Não é aqui, portanto, que está a mola do poema. 
A Intriga dos deuses abre com o consílio dos deuses no Olimpo, com que se inicia a ação do poema e fecha na Ilha de Vênus, com que ele, praticamente, se encerra. Formalmente, a unidade de “OS Lusíadas” é estabelecida pela intriga dos deuses. Eles estão em cena desde o princípio até ao fim do poema. Não se trata de mero quadro externo, ou de uma sobreposiçãomitológicas têm uma vida que falta nas personagens históricas: são elas as verdadeiras criaturas humanas, que sentem, se apaixonam, intrigam e fazem rebuliço. 
O Gama é muito mais hirto e frio que o gigante Adamastor, apesar de este ser um cabo. Ninguém tem o vulto, a irradiação, a força, a personalidade provocante de Vênus. Camões é o único escritor que soube dar viço e alma à mitologia greco-latina: à sua invocação, os deuses mortos renascem. Assim, o pensamento mais profundo e mais vivo de “Os Lusíadas” não é expresso pelos seus heróis e pelas ações ferozes por eles praticadas, mas sim o representado pelo mundo dos deuses e deusas. Por isso, decerto, aqueles não passam de sombras em comparação a estes; e por isso o poeta tem sempre pronta uma censura ou uma restrição para esses heróis, chamando glória de mandar, vã cobiça, bruta crueza e feridade aos impulsos que os movem. 

NO PLANO MITOLÓGICO, a ação consiste no seguinte: Vênus, ajudada por Marte, seu amante, pretende que os portugueses , seus protegidos, cheguem ao fim da viagem; Baco entende que o Oriente é domínio seu, esforça-se por impedir que prossigam a viagem. Para tanto concita contra eles a animosidade dos povos costeiros, consegue mover as divindades marítimas a desencadearem uma tempestade e, finalmente, induz os mouros de Calecute a conspirarem contra o Gama. Mas, Vênus, sempre vigilante, intervém junto ao seu pai, Júpiter, mobiliza as ninfas do mar, que impelem as naus para fora das zonas perigosas, e, seduzindo os deuses do mar, consegue aplacar a tempestade. Finalmente, para premiar os nautas, prepara-lhes, com a ajuda do filho Cupido, uma ilha de delícias, onde eles, conubiando-se com as Ninfas, se tornam, como elas, divinos e são admitidos à visão do cosmos. Vasco da Gama casa-se com Tétis, a deusa do mar. 
A espinha dorsal do poema está na intriga dos deuses. Nela se encontrará a verdadeira ação com princípio, meio e fim. Vênus, Baco, as Nereidas e Tétis, não são alegorias do Mar, do Oriente, etc. São personagens de uma história que é, afinal, a única do poema. Se suprimíssemos a fábula mitológica de “Os Lusíadas”, só restariam fragmentos de crônica rimada. 

OS ESCURSOS, o poeta tece considerações sobre diferenciadas matérias. Sendo o dono do seu discurso e não fazendo parte dos fatos históricos referentes ao passado de Portugal, o poeta comete desvios do modelo clássico da epopéia, rompendo aqui e ali com o cânone renascentista, na medida em que questiona esta mesma história, tece críticas severas ao Ilustre peito lusitano, faz acusações que poderiam comprometer a matéria épica. Contudo, tais desvios e rupturas do poeta em relação aos modelos da antiguidade clássica que se propunha seguir na proposição, não invalidam a epopéia camoniana. À luz dos estudos estilísticos e periodológicos contemporâneos, estas contradições o consagram “Os Lusíadas” como a única epopéia representativa do Maneirismo europeu, e não do Renascimento, como era considerada até os avanços dos estudos sobre a literatura e os estilos epocais surgidos no século XVI em Portugal. 

Continuaremos, a seguir, na postagem intitulada: “OS Lusíadas - PARTE II. 
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Autora: Zenóbia Collares Moreira Cunha

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