18 de abr. de 2012

O Drama Existencial de Ana Augusta Plácido. - PARTE V


A produção literária placidiana compreende poesias, romances, novelas e contos, um drama para teatro, meditações, traduções de romances e livros religiosos, ensaios e artigos jornalísticos, escritos em períodos descontínuos, mas das vezes após largos tempos de forçosas interrupções motivadas geralmente por seus graves dramas familiares. Sua obra ficcional, principalmente os romances, foram escritos apenas durante pouco mais de sete anos de intensa atividade. Aos quarenta anos de idade, quando acabara de produzir o que, sem sombra de dúvida constitui o seu melhor romance - Herança de Lágrimas - Anna Augusta abandonou definitivamente a ficção, deixando, além de dois livros publicados, algumas obras – poesias, romances e uma peça para teatro – incompletas e dispersas por jornais da época nos quais colaborou. Os originais completos de tais obras nunca foram encontrados, seja porque perderam-se após o seu falecimento, seja porque os abandonou sem jamais concluí-los, após o fechamento dos periódicos onde os publicava sob a forma de folhetins.
A qualidade do que escreveu, o seu talento como ficcionista, estão testemunhados, principalmente pelo romance Herança de Lágrimas, o último que compôs, antes de abandonar a atividade literária. Este romance inexiste nas bibliotecas públicas portuguesas.
Somente uma mulher dotada de uma forte personalidade e de uma decidida vontade de saber poderia reunir, em meados do ainda preconceituoso século XIX contra a instrução da mulher, o saber literário e o lastro cultural que Anna Augusta Plácido revela em sua obra, através das epígrafes, das citações, das alusões que pontilham cada um dos seus textos, todos testemunhando um considerável domínio de literatura portuguesa e estrangeira, de autores apreciadíssimos na época e reverenciados pelos cultores do Romantismo. 
Já no seu primeiro livro – Luz coada por ferros – publicado em 1863, estão evocados autores como Parny, Madame de Staël, Chateaubriand, Lamartine, Alfred Musset, Vigny, Balzac, George Sand, Xavier de Maistre, Alexandre Dumas, Joseph Méry, Benjamim Constant, Wieland, Felinto Elísio, Silvio Pélico, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Castilho, Mendes Leal, Padre Francisco de Sousa, D. Francisco Manuel de Melo, Cervantes, Tasso, Racine, Shakespeare, entre outros.
Com efeito, o gosto de Anna Augusta pela leitura remonta ao tempo em que ainda vivia com o marido, pois, ao ser encarcerada, já dispunha de uma biblioteca pessoal, coisa invulgar para uma mulher portuguesa do seu tempo, da qual não se distanciava. Como escreve Alberto Pimenta, ao ser levada à prisão no presídio da Relação do Porto, exigiu que fossem transferidos para a sua cela á volta de 500 livros”, e todo o material de que necessitava para dar continuidade às suas atividades de escrita, ou seja: “uma vasta mesa com enorme tinteiro... resmas de papel e de brochuras”.[i] O seu gosto pelo estudo é mencionado por Camilo em carta escrita ao amigo e confidente José Barbosa, quando estavam ele e Anna Augusta presos: “D. Anna vive e estuda”[ii], ou seja, dedica-se ao trabalho literário, exigido por suas colaborações, escritas na cadeia, para os jornais O Atheneu, O Nacional e a Revista Contemporânea de Portugal e Brasil.
É significativo que Anna Augusta tenha dado início a sua atividade literária justamente após ter abandonado o casamento e a vida estável e confortável que fruía na companhia do riquíssimo marido, quando a sua situação social e financeira se tornava cada vez mais complicada e difícil. É de se indagar como conseguiu reunir ânimo e forças para se concentrar no trabalho intelectual em meio a atmosfera convulsa e sombria que a rodeava.
Em 1861, recém saída do cárcere e em penosa situação financeira, com a finalidade de obter recursos para assegurar a sua sobrevivência, fez projetos de inaugurar um jornal literário – Esperança. Todavia, apesar dos esforços de amigos para obter assinaturas e da intensa propaganda feita pela imprensa, mesmo contando entre os seus colaboradores personalidades de relevo no meio literário do seu tempo, como Vieira de Castro, Júlio César Machado, Alexandre Braga, Arnaldo Gama, Custódio José Vieira e outros, o empreendimento não vingou. Concorreu para o seu fracasso a sistemática e pertinaz campanha difamatória e desmoralizante dos amigos do marido traído de Anna Augusta contra o jornal da “devassa”, como a denominavam insultuosamente. A partir de 1863, sua colaboração em periódicos tem relativa continuidade, aparecendo trabalhos da autora assinados com as letras iniciais do seu nome ou com pseudônimos masculinos em vários deles: O Futuro, do Rio de Janeiro (1862-1863), A Esperança (1865-1866), a Gazeta Literária do Porto (1868), Almanaque da Livraria Internacional (1873).
O perfeito domínio da língua francesa valeu a Anna Augusta uma considerável quantidade de traduções, algumas publicadas anonimamente, outras assinadas por Lopo de Sousa e editadas por editoras do Porto e de Lisboa: Mês de Maria Imaculada Conceição, de Alphonse Gratry (1865). Em 1874, traduz dois livros de Amedée Achard: Como as mulheres se perdem e A Vergonha que mata. Em 1875, aparece Aprender na desgraça alheia, de Benjamim Constant, seguido, em 1876 de Feitiços de mulher feia, de Vítor Cherbuliez A Vida Futura do Oratoriano Louis Lescoeur (1877), Pio X, Sua vida, sua história e seu século, de Jacques Villefranche (1877), O Papa e a Liberdade, do Dominicano Julien Constant,(1879). Em 1873, colaborou com Camilo Castelo Branco na tradução do Dicionário Universal de Educação e Ensino, de E. M. Campagne.
Logo à primeira vista, observa-se que as obras traduzidas por Anna Augusta situam-se em duas áreas de interesse bem distintas: a religiosa e a social. Nesta última reúnem-se obras que estavam destinadas a compor a coleção Biblioteca das Senhoras, criada com o intuito de conscientizar as suas leitoras acerca das limitações a que social e culturalmente estavam subordinadas.
O ano de 1863 assinala a estréia de Anna como escritora, com a publicação do seu livro Luz coada por ferros, o único assinado com o seu nome próprio: Anna Augusta Plácido. Contudo, não se trata ainda de um romance, mas de um livro que congrega alguns contos, uma novela e sete textos com o título de Meditações. O conjunto de narrativas que o constituem revelam a escritora ensimesmada, que se isola na cidadela do seu próprio eu, que lança o seu olhar devassador dos meandros mais dramáticos e dolorosos da sua própria biografia, buscando nos subterrâneos da sua memória a substância com que plasma a sua escrita, altamente intimista.
Luz coada por ferros não é o seu melhor texto. Todavia, tem uma importância capital na medida em que com ele a autora assume a sua personalidade literária e o faz com a ousadia de quem aposta em si, de quem se reconhece como escritora e crê em sua capacidade de afirmar-se como tal na ribalta da cena literária.
Em 1864, Anna Augusta escreve um drama em três atos, intitulado Aurora, publicado em O Civilizador, entre 1º de janeiro e 15 de junho do ano seguinte, data em que o periódico saiu de circulação, interrompendo a publicação no final do segundo ato. Aparece como autor da obra Lopo de Sousa, um dos pseudônimos da autora. Apesar de incompleto, o drama tem interesse, não apenas pela intriga bem urdida como por se tratar de uma obra bem diferente das restantes produzidas pela autora: uma peça para o teatro.
Sorte semelhante teve o romance Regina, também assinado por Lopo de Sousa, publicado na Gazeta Literária do Porto, cuja direção estava ao cargo de Camilo Castelo Branco. O fechamento do periódico interrompeu a publicação da narrativa. 
Em 1871, o jornal O Vimaranense assume a publicação do romance Herança de Lágrimas. Contudo, a reduzida tiragem de apenas “umas dezenas de exemplares” logo se esgotou. Assinado com o pseudônimo Gastão Vidal de Negreiros, este romance assinala o ponto alto da escrita ficcional placidiana.

NOTAS
[i] Alberto Pimenta, Os Amores de Camilo, p. 369.
[ii] Correspondência de Camilo Castelo Branco com os irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa, vol. II, carta número 162, de 7.7.1861.
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AUTORA: Zenóbia Collares Moreira. Ensaios.

CONTINUA

Um comentário:

Luísa Ataíde disse...

Uma pequena observação: Herança de lágrimas, 1871, foi escrito com o pseudônimo de Lopo de sousa. Gastão Vidal de Negreiros foi um nome usado para publicações em periódicos, provavelmente.