12 de out. de 2012

A Poesia Fora do Cláustro. PARTE II



Ai! Melindrosa flor agonizada,
Despojado Jasmim de qualquer vento,
Que quando pasce traz na mesma alvura
Gala, mortalha, berço, e sepultura.
(D. Maria de Lara e Meneses)

Fora dos claustros doa conventos, com suas bibliotecas e acesso ao saber, poucas mulheres recebiam uma instrução que lhes permitisse ir além de ler mal e escrever pior ainda. Somente as meninas nascidas em famílias abastadas ou pertencentes à aristocracia tinham acesso aos livros e ao aprimoramento de suas capacidades intelectuais. Essa realidade explica a rara aparição na cena literária de escritoras vindas das camadas sociais economicamente menos privilegiadas. Para estas, a via de acesso ao saber e à cultura teria que ser buscada nos claustros de alguma ordem religiosa. Vale acentuar que tal situação não é exclusiva do período barroco; ela pode ser observada ao longo dos períodos literários, desde o século XV, ou seja, desde a entrada da mulher na literatura, através de D. Filipa de Almada. Foi, portanto, nos salões do palácio real que as mulheres fizeram a sua estréia na poesia, na literatura do país.
Dentre as poetisas religiosas que se destacaram na cena literária fora dos conventos, figuram os nomes de Bernarda Ferreira de Lacerda, Maria de Lara e Meneses e Feliciana de Milão, todas três muito celebradas em sua época e freqüentadoras da corte.

BERNARDA FERREIRA DE LACERDA
(1595 – 1644)

Viver, por merecer mais,
N´este sagrado deserto,
D´onde o céu tendes tão perto,
Quão longe da terra estais.

Nascida no Porto, em 1600, Bernarda Ferreira de Lacerda pertencia a uma família aristocrática, sendo filha do Dr. Inácio Ferreira Leitão, chanceler-mor do reino. Muito religiosa, a poetisa pretendia ingressar no convento, porém desistiu de professar para atender ao pedido do seu pai para que se casasse com Fernão Corrêa de Sousa, de quem ficou viúva oito anos após o casamento, com seis filhos pequenos. Pelo conjunto das suas qualidades literárias, pelos seus dotes intelectuais, Bernarda Ferreira de Lacerda gozou de grande prestígio em sua época, tornando-se célebre em Portugal e em outros países europeus. A maior parte de sua obra foi escrita em língua espanhola, conforme o uso generalizado entre os escritores portugueses de seu tempo. É autora consagrada do longo poema épico Espanha libertada e do livro de poesias líricas Saudades de Bussaco, as duas principais obras que escreveu, revelando grande habilidade e desenvoltura tanto no gênero épico quanto no lírico.
Depois de uma curta e atormentada vida, Bernarda Ferreira de Lacerda morreu em 1º de outubro de 1645, aos 45 anos de idade, nos braços de sua filha. Ela mesma expõe a dolorosa vida que suportou, numa das estrofes do seu poema Saudades de Bussaco:

Ali nos crespos troncos
Com lágrimas suaves
A minha escreverei trágica vida.
Ali no mar os roncos,
A música das aves,
O murmurar das fontes, que convida
A amorosa saudade,
Roubarão para o céu minha vontade.

As Saudades do Bussaco, segundo a autora, tiveram a sua gênese por ocasião de um passeio que ela fez ao Bussaco, atraída pela fama do lugar serrano, afastado da cidade, dotado de uma estupenda paisagem. A extraordinária beleza região fascinou-a e, seduzida pela atmosfera mágica daquele espaço privilegiado, a poetisa não conseguia aceitar a idéia de abandoná-lo, como confessa nas estrofes do poema:

Oh! Se minha ventura,
Eliano deserto,
Tão desejado bem me concedera,
Que na densa espessura
Do teu céu encoberto
Em ócio branco e doce paz vivera,
Gozando de um retiro
Por quem suspiros dou, e em vão suspiro;

Que ufana, que contente
De tudo me apartara
Por chegar a gozar tal paraíso,
Onde, do mundo ausente
Segura sempre andaria,
Dando ao bosque alegria, aos campos riso,
Livre de sobressaltos,
Porém não livre o céu de meus assaltos!

Quem de pombas tivera
As asas voadoras,
Que sobre teus penedos subira!
Quem n´elles estivera,
Não momentos, mas horas,
Não horas só, mas annos, sem que vira
Fim a tão feliz sorte,
Senão com o da Parca mortal corte!

Os altos medronheiros,
Que com corado fructo,
Estão seus verdes ramos inclinando
Por cima dos outeiros,
Me dariam tributo
Para que fosse a vida sustentando,
O que hervas ajudaram,
Quando fructas agrestes me faltaram.

As fontes crystalinas,
Que rindo se despenham
Por entre musgo pardo e grama verde,
Abrindo ricas minas
De prata com que despenham
A quem ganhando alento sede perde,
De néctar excelente
Me dariam docíssima corrente.

As frescas espadarias,
Que os lírios se cobrem,
Me puderam servir de branco estrado,
E as relvas que ufanas
Mil boninas encobrem,
De livro, onde vive deixado
Do autor da Natureza
A providência, amor, graça e beleza.

O poema Saudades do Bussaco é formado por um conjunto de quadros esplêndidos, nascidos do encantamento da poetisa pela formosura que brota de cada elemento da paisagem, de cada recanto, tudo captado por seu delicado sentimento, pela sedução que exerce sobre a sua sensibilidade a aquarela de cores, os aromas das flores e das ervas, os sons das aves e das fontes cristalinas que despencam pela serra. As descrições da autora se sucedem em cascata, numa tentativa reiterada de retratar tudo quanto naquele recanto isolado a deixa maravilhada. Todavia ela sabe que só com a sensibilidade, com o sentimento estético da natureza tudo aquilo pode ser percebido:

Retratar-vos intentei,
Ó deserto peregrino;
Porém, como sois divino,
Em vão mil linhas lancei.
Confesso enfim que não sei
Juntar vossa formosura.
E assim por mais que procura
Meu amoroso desejo,
Das perfeições que em vós vejo,
Difere muito a pintura
Se em graça sois sem igual,

E mora em vós sempre a Graça,
Quem haverá que vos faça
Um retrato natural?
Quis mostrar, como em cristal,
N´este debuxo, a riqueza
Que encerra vossa pobreza;
Porém nada tenho dito
Pois nem as sombras imito
De vossa rara beleza.

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De eternos sois Oriente,
Que Ocaso jamais conhecem,
Vergel fértil d´onde crescem
Flores de cheiro excelente.
Quem copiosa corrente
Do vosso néctar não prova,
Veja a maravilha nova
Que em Lusitânia mostrais,
As grandezas que encerrais
Dentro na mais pobre cova.


Vivei, vivei venturosos,
Divinos habitadores
Que d´este jardim sois flores,
Deste céu sois luminosos,
Soldados que valorosos,
De pelejar não cansais,
Viver, por merecer mais,
N´este sagrado deserto,
D´onde o céu tendes tão perto,
Quão longe da terra estais.

O que singulariza Saudades do Bussaco é a forma inovadora como a poetisa focaliza a paisagem, fazendo dela o tema do poema. Esse sentimento estético da natureza não está previsto no cânone do Barroco, tampouco era usual entre os poetas lusitanos. Estes não chegaram a manifestar um sentimento estético da natureza, o gosto pela descrição pintores do espaço físico, da paisagem. Bernarda Ferreira de Lacerda dá um salto à frente do seu tempo e, ignorando os lugares-comuns, os surradíssimos clichês exaustivamente usados pelos poetas, principalmente a partir do classicismo-renascentista, substitui a paisagem convencional dos clássicos por uma paisagem viva. Os quadros descritivos da paisagem do Bussaco são reveladores de um profundo sentimento estético da natureza. A autora se compraz em descrever os espetáculos naturais, os esplendores da paisagem.
Vale salientar que, nos domínios da literatura, a valorização da paisagem não constitui um fenômeno atinente ao século XVII, espaço do Barroco, mas sim ao século XVIII, mais precisamente ao Pré-romantismo.
Com o avanço da botânica e da astronomia, passou-se a olhar para a natureza de forma diferente, ampliou-se a percepção de sua beleza e do multifacetado aspecto que pode ser captado do seu conjunto. Na verdade, somente com o advento do Pré-romantismo alemão, no limiar do século XVIII, a natureza foi sendo percebida e tornada tema predileto dos poetas, que a despojaram do convencionalismo que sempre fizera dela uma imagem padronizada, sem vida e artificial.
O poema épico “Espanha libertada” é desenvolvido em 20 cantos, em oitava rima, nos quais a poetisa celebra a libertação da Espanha do domínio maometano, como evidencia a estância que abre o canto:

Da nossa Espanha a liberdade canto,
E as façanhas do Godo valoroso,
Que com ânimo ousado e zelo santo
A foi tirando ao jugo trabalhoso;
E os feitos também dignos de espanto,
E de sublime verso belicoso,
Que em Espanha praticou a gente forte
Triunfando dos tempos e da morte.

Logo à primeira leitura dessa estância, fica bem claro o eco dos versos camonianos em “Os Lusíadas” (canto I, estr. 1). Como Camões, a poetisa constrói seu canto épico em oitava rima, ou seja, com rimas cruzadas nos seis primeiros versos e rimas emparelhadas nos dois últimos.
O soneto abaixo justifica a inserção da poetisa na vertente cultista da estética barroca. A autora desenvolve o soneto através de um jogo imagético constituído por metáforas, em alguns versos obscuras, sugerindo mais do que dizendo. Se, por um lado, sacrifica a clareza da idéia, por outro permite que seja inteligível, justamente porque todo o seu preciosismo radica no rebuscado da construção dialética, fundada na metáfora que estabelece a articulação entre os quartetos e os tercetos. Sem dúvida, a poetisa revela domínio de um dos aspectos mais típicos do estilo barroco: a capacidade de invenção verbal, a volúpia em manipular ludicamente a linguagem.

Na minha solidão a fénix retirada
Em ajuntar de aromas cópia entende
Quando prudente renovar pretende
A vida, e formosura já gastada.
E na região das nuvens levantadas
As asas quando o sol mais arde, estende,
Dali desce, e batendo-as fogo acende
Donde, depois renasce de abrasadas.

Assim o solitário no deserto
Méritos ajuntando, bate as asas
Da consideração, e amor excita,
Que o fere o soberano Sol de perto,
E tudo o que era humano feito brasa
Das cinzas já divino ressuscita.

Bernarda Ferreira de Lacerda não foi reconhecida e celebrizada apenas em Portugal. Ela foi, na época em que viveu e produziu a sua obra, uma das escritoras que gozaram do maior prestígio dentro e fora do país, especialmente na Espanha.


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