9 de fev. de 2013

A profanação do mito do amor-paixão no Realismo (Parte XIV)



Tratando agora da “linha do material”, veremos que ela tem continuação na segunda metade do século XIX, com o Realismo, movimento que, como sabemos, se opõe ao Romantismo. que seguia a “linha do espiritual”. 
Essa oposição entre a linha do espiritual e a linha do material já se anuncia na poesia de Garrett, espírito essencialmente dramático, dividido entre espiritualidade e sensualidade, entre o ideal de amor sentimento, de amor puro, e a irresistibilidade dos apelos dos sentidos, como bem o revela o poema que se segue, à guisa de exemplificação: 

Não te amo, quero-te: o amor vem da alma 
E eu n’alma – tenho a calma, 
A calma – do jazigo. 
Ai! não te amo, não.
Não te amo, quero-te: o amor é vida. 

 E a vida – nem sentida 
A trago eu já comigo. 
Ai, não te amo, não.! 
Ai! não te amo, não; e só te quero 
De um querer bruto e fero 
Que o sangue me devora, 
Não chega ao coração.

 Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
 Quem ama a aziaga estrela 
  Que lhe luz na má hora 
 Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado, 
De mau feitiço azado, 
Este indigno furor. 
Mas, oh! não te amo, não.
 E infame sou, porque te quero: e tanto 
 Que de mim tenho espanto, 
 De ti medo e terror..
 Mas amar! ...Não te amo não!. 

Em quase todos os poemas de Folhas Caídas de Garrett, observa-se o conflito em que vive o “Eu” lírico, entre o seu ideal de amor sentimento e a sua inclinação para o amor sensual. Ele mesmo confessa, no prólogo de seu livro que: “O meu deus verdadeiro é realmente aquele misterioso, oculto e não definido sentimento de alma que a leva às aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do poeta.” a sua aspiração a um grande amor que o elevasse acima dos meros delírios dos sentidos”. A obra poética de Garrett indica a oposição dramática entre “corpo e alma”entre amor sentimento e amor sensual, que caracteriza toda a literatura amorosa, desde a o Romance da Rosa. 

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Em Portugal, o romance de Eça de Queirós, O Primo Basílio , é a antítese de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. O herói de Camilo nutria por Teresa um amor puro: 
"Nunca os meus pensamentos foram denegridos por um desejo que eu não possa confessar alto diante de todo o mundo. Diz tu, Teresa, se os meus lábios profanaram a pureza dos teus ouvidos. Pergunta a Deus quando quis eu fazer do meu amor o teu opróbrio. 
Nunca, Teresa! Nunca, ó mundo que me condenas! ( ob. cit, p. 186)" 
Já Basílio só queria satisfazer seus instintos. Diz Cleonice Berardinelli, a respeito da referida personagem , quando analisa a obra de Eça de Queirós:
“Basílio busca em Luísa apenas uma aventura a mais. Indu-la ao adultério conscientemente, sem nada que o justifique. Sua falta contra a instituição básica da sociedade, a família, é agravada pelo seu cinismo.” ( 9) 
Eis como se expressa, em pensamento, Basílio, quando recebe um pedido de Luísa que quer partir para o exterior com ele:

"E soprando o fumo do charuto, começou a considerar, com horror, a “situação”: 
Não lhe faltava mais nada senão partir para Paris com aquele trambolhozinho! 
Trazer uma pessoa, havia sete anos, a sua vida tão arranjadinha, e patatrás! Embru- 
lhar tudo, porque à menina lhe apanharam a carta de namoro e tem medo do esposo! 
Ora o descaro! "

A “linha do espiritual” difere radicalmente da “linha do material” ( ou do sensual), na mesma medida em que idealização e pureza diferem de realidade e cinismo . 
Romantismo e Realismo nos coloca, assim, perante duas realidades distintas e antitéticas com fortes parentescos, de um lado, com o que nos é dado pelo Romance da Rosa, através das suas duas versões, por um outro, com o mito de Tristão e o mito de Don Juan. Portanto, para apreendermos o que se passou com o Mito do amor-paixão no século XIX, ou seja, a sua profanação ou vulgarização, é necessário, não só que compreendamos alguns costumes típicos do século XVII, como retomemos, como ponto de partida às duas versões deste romance medieval, relacionando-as ,a seguir com às personagens míticas antes referidas. 


CONTINUA...

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