9 de fev. de 2013

O Mito do Amor-Paixão no Ultra-Romantismo (XII))



Como já o dissemos antes, a burguesia foi a responsável pelo não aparecimento do adultério, bem como a punição de tal delito ( o adultério era considerado crime, passível de prisão, tal como ocorreu com o próprio Camilo e Ana Plácido) , nos romances da primeira metade do século XIX. Portanto, se havia adultério no romance, este era severamente punido, tal como o faria a sociedade e a justiça.
Já no século XVIII, ocorre a ascensão crescente da burguesia endinheirada que se tornava a maior consumidora da literatura. No século XIX, a obra literária não é mais que um objeto de consumo, exposto às leis do mercado capitalista, ou seja, a lei da oferta e da procura, portanto, para sobreviver com o fruto do seu trabalho, o artista tem que produzir  obras que satisfaçam às exigências do público consumidor.
Por isso, ao lado de obras que recriavam o mito do amor-paixão, surgem outras em que se dará o aburguesamento da história com a modificação do final, que não será mais trágico, mas um final feliz. Assim, para atender à solicitação da burguesia, cada vez mais poderosa, a filha de um escrivão casa com o filho do patrão ( Uma família Inglesa de Júlio Dinis), duas órfãs casam com ricos herdeiros de terras ( As pupilas do Senhor Reitor de Júlio Dinis), pois para a burguesia, a mais importante aspiração era o nivelamento social. Tais obras não apresentam punições, no plano sociológico, como o mito, pois os que se amam, embora encontrem obstáculos à realização do amor, conseguem superá-los. O final do romance, que termina em matrimônio, com a fórmula “Foram felizes e tiveram muitos filhos”, faz supor que o novo casal dará, em futuro próximo, sua contribuição ao grupo social. Estes romances eram publicados, geralmente, em folhetins, juntamente com as Óperas e as operetas, foram para o século XIX, o que as novelas de televisão e o cinema são para o público do século XX.

O Ultra-Romantismo nos oferece também nos domínios da poesia manifestações da presença de conceitos míticos.
No que pese à conotação pejorativa que durante muito tempo recaiu sobre o Ultra-Romantismo, principalmente através da visão que dele tinham os primeiros historiadores da literatura portuguesa, hoje esta tendência do Romantismo já está reabilitada aos olhos da crítica.
Em 1880, Teófilo Braga  formulou  o conceito de Ultra-Romantismo, que o considerava uma expressão da decadência do Romantismo, um mero fenômeno da degradação a que tinha chegado a literatura romântica em Portugal, invadida pelos excessos sentimentalistas e funéreos, a partir dos derradeiros anos da década de quatenta do século XIX.
A cidade do Porto, berço de Camilo Castelo Branco, Soares de Passos e Maria Brawne, os mais fieis cultores dão Ultra-Romantismo, era o lugar onde predominava , notadamente na poesia, o que a crítica mordaz de Gomes de Amorim rotulava de “poético-mania”  ultra-romântica que traça o perfil caricatural do poeta infeliz com o nos “tenebrosos subterrâneos”dos romances “góticos”de Ana Radcliffe ( autora pertencente ao Pré-Romantismo inglês), acabando por caricaturar o inevitável “amor no cemitério”.
Todavia o fenômeno do chamado Ultra-Romantismo na literatura do século XIX não foi tão simples como poderia parecer. A sua gênese deve ser procurada na influência tardia que as obras dos autores do Pré-Romantismo anglo-germânico  exerceram sobre os autores do Romantismo português. Edward Young, com as suas Noites, que puseram em moda em toda a Europa a poesia noturna e sepulcral; Tomás Gray, com a sua célebre Elegia escrita em um cemitério de aldeia; James Hervey, com a sua obra Meditações entre os túmulos; Richard Blair , com Le Tombeau; Parnell com seu poema Noturno sobre a  morte. Mais tarde, o poeta inglês Lord Byron, que, com a sua morbidez e o seu satanismo, seduzia as mentes românticas, propensas ao cultivo do lado sombrio e pessimista da vida. Esta literatura que tanto sucesso fizera no período pré-romântico, em razão da proibição da censura civil em Portugal, nas últimas décadas do século XVIII e primeiras do século seguinte, eram praticamente desconhecidas do público e dos escritores de então. Somente com a suspensão da censura, após dos anos vinte do século XIX, tais obras podiam ser trazidas para o país. Daí certos traços definidores da estética pré-romântica surgirem nas producões poéticas ultra-românticas, notadamente, o gosto pela poesia noturna e sepulcral, das elucubrações sobre a morte e o destino do homem, ao qual se mesclam determinados conceitos míticos, como o do amor ligado à idéia da morte, do amor eterno que se realiza ou que prossegue após a morte.  O que isto parece significar é a evidência de que a literatura amorosa do Ocidente está presa, no plano existencial, ao mito do amor-paixão, ou seja, à história de Tristão e Isolda, sempre retomada, adaptada às circunstâncias, aos tempos, mas sempre revivida e revitalizada, como a provar que o homem do Ocidente vive no sentido latente do Mito e do fascínio que exerce sobre os anseios amorosos inerentes à sua condição humana.


Antes de fazermos a leitura dos textos, lembremos alguns traços definidores do Ultra-Romantismo.

Este estilo assinala um forte desequilíbrio do pensamento, da expressão das emoções e dos sentimentos, na medida em que os exprime de forma hiperbólica e excessivamente dramática. Manifesta um predomínio da emoção, da exaltação do espírito, da melancolia, da melancolia que vai levar ao tédio da vida e, consequentemente ao desejo da morte, ao fatalismo. Aqui se volta a sentir a presença do masoquismo, expresso no gosto da própria dor, do desejo de fartar o coração de tristeza, de buscar lugares apartados e sinistros.
A Natureza é pintada com cores tristes e vai até o domínio do tétrico, do macabro, com fantasmas, sepulturas, ajustando-se, assim, ao estado de alma do poeta. (tudo isto tão tipicamente pré-romântico!).
Afirma-se o gosto pelo melodrama tão longe do equilíbrio do drama romântico. Aqui e ali, sente-se certa religiosidade que está muitas vezes ligada à magia, à crença num regresso das almas a este mundo.
Vejamos, a guisa de exemplo, o poema que se segue.

  NOIVADO NO SEPULCRO

Vai alta lua!  Na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranqüila!  Dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou
                         II
Que paz tranqüila!...  Mas eis longe,  ao longe,
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma, semelhante a um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.
                        III“
“Ergueu-se,  ergueu-se! ... Na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
Do mocho pia na marmórea cruz.
                         IV
Ergueu-se,  ergueu-se!... Com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre os campos arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
                       V
Chegando perto duma cruz alçada,
Que, entre os ciprestes, alvejava ao fim,
Parou,  sentou-se e, com voz magoada,
Os ecos tristes acordou assim;
                    VI
“Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei de amar,
Por que atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?
                     VII
“Amor!  Engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem dentre os vivos se lembrará ainda
Do pobre morto que na terra jaz?
                     VIII
“Abandonado neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai!  Quão pesada me tem sido a lousa
Sobe este peito que bateu por ti!
                   IX
“Ai!  Quão pesada me tem sido!” E, em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
                  X
Talvez que, rindo dos protestos nossos,
Gozes com outro d’infernal prazer,
E o ouvido cobrirá meus ossos
N aterra fria, sem vingança ter !
                     XI
 - Oh!  Nunca, nunca!  de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
“ -Oh! nunca, nunca! “ repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem,
                 XII
Cobrem-lhe as formas divinais, airosas,
Longas roupagens de nevada cor,
Singela c ‘roa de virgíneas rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
                XIII
“Não,  não perdeste meu amor jurado
“Vês este peito? Reina a morte aqui...
“E já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas inda pulsa com amor por ti.
               XIV
Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
“Da sepultura, sucumbindo à dor:
Deixei a vida... Que importava o mundo,
“Um mundo em trevas, sem a luz do amor?
                XV
“Saudosa ao longe vês no céu a lua?
“Oh! vejo, sim...  recordação fatal!
“Foi à luz dela que jurei ser tua,
“Durante a vida e na mansão final.
                   XVI
“Oh!  vem!  se nunca te cingi ao peito,
“Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
“Quero o repouso do teu frio leito,
“Quero-te unido para sempre a mim!”
                      XVII
E ao som dos pios do cantar funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d’infeliz amor.
                    XVIII
Quando risonho despontava o dia,
Já deste drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignara mão,
                  XIX
Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.


SOARES DE PASSOS  ( grifos nossos)


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